Atenção: o texto contém imagens sensíveis de violência explícita
Caroline Campos
Aconteceu Naquela Noite (1934), de Frank Capra, Um Estranho no Ninho (1975), de Milos Forman e O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme, são o trio de ouro do Oscar. Os três integram o seleto grupo Big Five, dedicado aos filmes que levaram para casa as principais estatuetas da premiação – Melhor Filme, Ator, Atriz, Direção e Roteiro. No entanto, quando Elizabeth Taylor anunciou o último prêmio daquela noite de 1992 para a obra de Demme, ela também consagrou o primeiro Oscar de Melhor Filme para um longa de terror na história da cerimônia até então. Passados 30 anos, o impacto de O Silêncio dos Inocentes na cultura cinematográfica continua incontestável e não há nada que apague a reputação de Hannibal Lecter e Clarice Starling do imaginário popular.
Se há quem tenha se incomodado com a indicação de Viola Davis na categoria de atuação principal do Oscar 2021 por seu tempo de tela em A Voz Suprema do Blues, imagine para quem acompanhou, três décadas antes, a magnífica consagração de Anthony Hopkins por um personagem que aparece em cerca de 24 minutos durante o filme. Não há como argumentar: O Silêncio dos Inocentes é um clássico irrefutável. A caçada do FBI pelo serial killer Buffalo Bill somada à relação esquisita e complexa entre a jovem agente Clarice Starling e o psiquiatra canibal Dr. Hannibal Lecter ainda suscita discussões, análises e problemáticas por cada escolha narrativa da direção de Jonathan Demme e do roteiro de Ted Tally, baseado na obra homônima de Thomas Harris lançada em 1988.
Inicialmente, nem Hopkins nem Jodie Foster foram idealizados por Demme. Gene Hackman desistiu do papel de canibal e passou a bola para Sean Connery, que também pulou fora e caracterizou o roteiro como revoltante. O papel de Clarice transitou entre Michelle Pfeiffer e Meg Ryan, mas ambas recusaram por conta do teor da trama. Enfim, a dupla principal foi escolhida. Na época, Anthony estava com seus 53 anos e acreditou, pelo título, que se tratava de um filme infantil. Foster, no entanto, vinha de um Oscar de Melhor Atriz pela sua interpretação no filme Acusados. Não demorou muito para Jonathan Demme se tornar o diretor mais feliz do mundo com a sua decisão.
Nos anos 90, ter uma mulher à frente de um longa de suspense não era muito comum. O Silêncio dos Inocentes é filmado inteiramente sob o ponto de vista da personagem de Foster, que desafia a soberania masculina do seu ambiente de trabalho e treinamento e precisa provar sua competência em toda bendita cena. Eu me formei na UVA, doutor. Isso não é uma escola de beleza. Demme é sutil em nos colocar na pele de Clarice Starling. Os personagens masculinos estão sempre conversando diretamente com a câmera ou a encarando desconfortavelmente, enquanto é a agente que sustenta, lateralmente, seus olhares e provocações. Essa troca de posições coloca o espectador intimamente ligado aos sentimentos da protagonista, refletindo seu incômodo enjoativo e tornando-nos seus aliados.
E, de fato, a força da heroína só tomou a proporção merecida por conta da interpretação dura e resistente de Jodie Foster. Dentro de um elevador cercado por homens, Clarice mantém o olhar erguido. Em uma sala cheia de policiais, ela levanta a voz e pede para que todos saiam. Não há como competir com seu protagonismo. Seus vilões estão longe de se limitar apenas aos psicopatas – é Dr. Chilton a reduzindo a sua beleza, é Jack Crawford a isolando de uma discussão com a polícia local, é cada olhar desconfiado de um parceiro de trabalho. Mesmo assim, a personagem não permite que isso afete seu desempenho perfeito na carreira; ela se impõe e os faz se desculpar.
Curiosamente, é Hannibal que a entende e a ajuda em sua busca por aceitação própria. O psiquiatra a trata como uma de suas pacientes, exigindo relatos pessoais em troca de sua ajuda para descobrir o paradeiro de Bill. Quid pro quo. Desde o primeiro encontro da dupla, fica claro quem é o principal parceiro de Clarice, por mais mórbida que a situação seja, e Jonathan Demme espreme o talento de seus atores até o talo para concretizar que cada interação entre os personagens fosse espetacular. Não que fosse uma tarefa difícil – Hopkins, por exemplo, improvisou a cena que zomba do sotaque sulista de Starling, o que gerou uma reação genuína de ofensa por parte da atriz.
Na investigação contra Buffalo Bill, a estrela do show é o Departamento de Ciências Comportamentais do FBI. A inspiração para O Silêncio dos Inocentes veio da mesma fonte que a base para Mindhunter: as entrevistas com serial killers realizadas por John Douglas. O agente foi a referência direta para a criação de Jack Crawford, mesmo que o personagem de Scott Glenn não o agrade tanto assim. Thomas Harris, autor do livro e ex-repórter policial, acompanhou de perto a rotina da agência para desenvolver perfis psicológicos de criminosos e chegar a seu Hannibal Lecter, o ponto de partida para a representação de assassinos em série como figuras contidas e frias, mas extremamente inteligentes.
Anthony Hopkins não se contentou em apenas interpretar. Ele investigou personalidades reais, visitou prisões e sugeriu mudanças no figurino de Collen Atwood para o personagem parecer mais espiritual. Toda a precisão e dedicação do ator gerou resultado: Hannibal, the Cannibal é hoje um dos vilões mais marcantes do Cinema – há quem diga o mais marcante. Sua figura hipnotizante deixou a produção assustada desde o primeiro take, que ficou assinalado por sussurros mais parecidos com sibilos, um olhar vidrado de réptil com um número mínimo de piscadas e aquela postura controlada e taciturna.
Não à toa, sua figura é a mais comentada quando se pensa em O Silêncio dos Inocentes. Mesmo que Hannibal funcione como uma ferramenta para a trajetória de Clarice, sua influência e sobriedade a embalam de cara, já que, pelas descrições de terceiros, a agente esperava algum tipo de maluco descontrolado como o próprio Miggs da cela vizinha. Gélido e sem demonstrar arrependimentos – Hopkins admitiu que a inspiração direta para sua interpretação de Lecter foi o computador HAL 9000, de 2001: Uma Odisseia no Espaço -, Clarice arranca alguma simpatia do psicopata, o instigando a ajudá-la enquanto a analisa e brinca com seus cordeiros. Então, Clarice, os cordeiros pararam de gritar?
Em parceria com a direção de arte de Kristin Zea e a montagem singular de Craig McKay, Hannibal protagoniza a cena que legitima a inserção do filme no gênero terror. McKay dá pequenas dicas do que vai acontecer: a caneta, o cassetete, o spray, as algemas. Esperamos ansiosos pelo desastre. Preso em uma gaiola, como um pássaro abatido, Dr. Lecter dá o seu golpe. Minucioso, sádico e compenetrado, Hannibal se diverte, como se jogasse um jogo em que os adversários já começam perdendo. Sua declaração é teatral – o pobre policial Boyle é estripado como se preparasse um vôo; os holofotes o posicionando contra-luz para marcar a exibição. Fabulosamente cruel.
Mesmo que o saldo de O Silêncio dos Inocentes depois de 30 anos seja, em geral, positivo, a representação problemática de Buffalo Bill segue sendo uma pauta relevante. O assassino de Ted Levine, que entrega uma performance merecedora do sexto Oscar para o filme, mata e esfola mulheres para criar sua própria roupa de peles e, como a própria obra caracteriza, alterar sua identidade. No entanto, o uso da palavra transexual é citado no filme como uma dúvida acerca da condição de Bill, e, apesar de ser reforçado que o assassino não é uma pessoa trans, sua representação recebeu duras críticas da comunidade LGBTQIA+ – diversos ativistas do movimento protestaram nos arredores do Dorothy Chandler Pavilion na cerimônia do Oscar de 1992 contra essa problemática em Hollywood.
O problema não envolve o longa de Jonathan Demme individualmente, nem o fato de uma pessoa trans ser retratada como um serial killer, mas sim um sintoma, principalmente dentro do cinema de terror, de associar a comunidade trans à criminalidade. Por muito tempo, não existia um contraponto; eram mínimas, quase inexistentes, as representações positivas de travestis e transexuais no Cinema. Psicose, de Alfred Hitchcock, Vestida para Matar, de Brian de Palma, entre outros longas, denotam como a transfobia foi utilizada nas telas para criar uma visão assustadora da pessoa transexual. O documentário Revelação, disponível na Netflix, traz um panorama do tema na visão de artistas trans. O mundo mudou e, 30 anos depois, é ótimo estarmos discutindo sobre o assunto com obras singulares que merecem ser assistidas criticamente.
O personagem de Levine é delicadamente instável, uma confusão de sentimentos e expressões. Buffalo Bill, alter ego de Jame Gumb, tem sua história narrada no paralelo. Ele engana suas vítimas, como a jovem Catherine Martin, e, de forma caótica, as joga em seu porão para que suas peles fiquem flácidas. No entanto, o descontrole emocional do personagem o deixa fascinante, com a pompa e os gritos escandalosos de Levine, que denota a profundidade não explorada que seu assassino oferece. Gumb ansia por uma mudança que o faça sair do casulo como uma nova criatura, mais bela, mais livre. Ele não percebe Clarice no seu encalço até que seja tarde demais e, ironicamente, as suas lindas mariposas são a peça faltante do quebra-cabeça da agente.
Mérito novamente de Craig McKay, não há cena mais interessante do que os momentos antes do encontro entre Clarice e Jame. Jack Crawford garante: nós já o pegamos. Uma equipe preparada circunda a casa suspeita, policiais com armas apontadas esperam o sinal. A campainha toca. McKay e Demme brincam conosco, e quem espera na porta do psicopata não é a SWAT. A surpresa só é seguida por um riso de indignação. Os momentos finais do filme não perdem o ritmo e, depois de uma angustiante cena de visão noturna, o arco de Bill se encerra da forma quase-majestosa que o personagem gostaria.
O lançamento de O Silêncio dos Inocentes aconteceu no fatídico Valentine’s Day de 1991. Fatídico, de fato, pois Jonathan Demme havia libertado um monstro nunca antes visto. Pouco mais de três meses depois, Hannibal Lecter desembarcou em terras brasileiras – literalmente, já que, no final do livro de Thomas Harris, o psicopata chega ao Rio de Janeiro. O Cinema balançou, o Oscar se empolgou e muitos espectadores ficaram sem dormir com medo de um canibal estar esgueirando embaixo de suas camas. O filme rendeu algumas continuações, que nem de perto se igualaram a preciosidade do clássico – Hannibal, de 2001; Dragão Vermelho, de 2002; Hannibal – A Origem do Mal, de 2007; a excelente série Hannibal, de 2013, com Mads Mikkelsen no papel do psicopata e, recentemente, Clarice, da CBS.
30 anos se passaram, mas poderiam ser 30 dias. O mundo não é o mesmo, mas a obra-prima de Jonathan Demme segue tinindo, com alguns arranhões muito bem fundamentados. Em 2021, Anthony Hopkins provou que seu talento não parou nas décadas passadas e foi agraciado com o Oscar de Melhor Ator por sua sensibilidade em Meu Pai, uma diferença quase cômica se comparado com o personagem de Lecter. Jodie Foster não fica para trás e também começou o ano levando um Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante por sua performance em The Mauritanian. A dupla segue irretocável.
Ainda podemos ouvir os berros dos cordeiros de Clarice. Eles a assombraram por tempo o suficiente para que se transformassem em sua força-motriz. O Silêncio dos Inocentes pregou seus personagens na parede da história cinematográfica e, até hoje, não falha em surpreender quem o revisita ou quem o contata pela primeira vez. Jonathan Demme, que faleceu em 2017, ainda deve receber uma flor ou outra daqueles que não conseguem superar sua obra. E, claro, não há nada para superar. O filme precisa ser visto, revisto, discutido, problematizado e analisado em todas as áreas. Enquanto tudo isso é feito, que tal um prato de favas com um bom Chianti para acompanhar?