Sabrina G. Ferreira
Um filme do qual podemos analisar os anseios, as dúvidas e os medos de uma sociedade passada para tentarmos aprender por meio deles: essa é a definição de O Sétimo Selo (no original, em suéco, Det sjunde inseglet; e no inglês, The Seventh Seal). Do diretor sueco Ingmar Bergman (Morangos Silvestres e Persona), o nome faz referência à passagem do livro bíblico Apocalipse em que Deus tem sete selos nas mãos, e a abertura de cada um deles representa um desastre para a humanidade, sendo o último o irreversível fim dos tempos. Trata-se de uma obra que incomoda o espectador desde seu lançamento em 1957, principalmente quando nos colocamos no lugar dos personagens e no meio caótico em que eles vivem.
A história se passa na Europa durante a Idade Média, num período em que a peste negra assolou o mundo, e matou dezenas de milhares de pessoas, provocando uma das maiores baixas populacionais já existentes. Assim, somos apresentados ao protagonista Antonius Block (Max von Sydow), um cavaleiro que lutou nas Cruzadas e está voltando para a casa com seu amigo e companheiro de batalha, o escudeiro Squire Jöns (Gunnar Björnstrand).
Em um momento de descanso para ambos, a Morte (Bengt Ekerot), elemento central da história, incorporada em uma figura pálida de roupas escuras, aparece para Block para o informar que seus momentos finais haviam chegado. A fim de ganhar tempo, o cavaleiro lhe faz uma proposta: pede que joguem uma partida de xadrez; se ela vencesse, ele iria sem protelar, mas do contrário, ele ganharia a liberdade. Intrigada com o desafio, a Morte aceita, e os duelos de xadrez tornam-se frequentes ao longo da trama. Bergman faz aqui um paralelo entre o jogo e o conflito morte versus existência, como se Deus estivesse movendo suas peças, e por consequência, movimentando nossas vidas.
O medo de monstros e outras criaturas sobrenaturais é frequentemente abordado na obra. Se hoje a tecnologia proporciona um mundo todo mapeado, no passado as pessoas não se “conheciam”, e para que houvesse contato entre elas, era necessário viagens a cavalo ou caminhar por meses para chegar em poucas centenas de quilômetros, enfrentando o frio, a neve e a chuva. Por isso, os aldeões em geral não tinham outra escolha senão acreditar no que lhes era contado, e, dessa forma, a ameaça do desconhecido pairava, preconizando seus maiores temores. Foi assim que surgiram grande parte das criaturas assustadoras do imaginário medieval, nesse misto de mitologia, moralidade religiosa e ignorância, criando uma “coleção” de monstros que contribuíram na maneira da sociedade de pensar e ver o outro – e também os preconceitos.
“Falam de profecias e outros horrores.
[…] Ontem foram vistos mais de um sol no céu”.
– Jöns
Enquanto Block e Jöns seguem por trilhas isoladas, eles param em um vilarejo local, e encontram uma família de artistas circenses, composta por Mia (Bibi Andersson) e Jof (Nils Poppe). O casal é religioso, e se configura no estigma de uma santa família feliz que acabou de gerar um primogênito. Jof tem constantes visões espirituais, mas não consegue convencer Mia da veracidade delas. Há também o núcleo de personagens secundários, composto pelo colega de espetáculo do casal, Jonas Skat (Erik Strandmark), que representa uma figura mais profana e cômica, um homem cuja esposa o traiu (posteriormente essa mulher adúltera também junta-se a eles), e uma camponesa que estava prestes a ser violentada, é salva por Jöns, e coagida a seguir com ele.
Além destes, há também pessoas hostis e gananciosas, como é o caso de Raval (Bertil Anderberg), que comete roubos (principalmente dos bens de pessoas mortas em decorrência da peste negra), e intimida Jof em uma taverna, fazendo-o imitar um urso, caso contrário, seria queimado vivo. O detalhe é que essa cena ocorre em meio a várias pessoas, também presentes no estabelecimento, que assistem o “espetáculo”, rindo e incitando a violência. O diretor/roteirista vê neles a justificativa para uma sociedade ser castigada pela peste, e mais tarde, todos os indivíduos, pecadores e não pecadores, inocentes e culpados, se encontrarão.
Entretanto, apesar da dificuldade em nos colocarmos no lugar dessas pessoas em vista das diferenças existentes em uma sociedade regida pelo medo e por dogmas impostos pela Igreja Católica, é possível adquirir simpatia por elas. É justamente isso que Bergman demonstra querer, expondo o quão imperfeitas essas pessoas são, mas ainda assim, não deixam de ser só indivíduos comuns, que reagem de formas diferentes em situações de pânico. Existe um conflito entre Luz e Razão na Idade Média que dissocia os Homens como bons ou maus, sem cogitar na dualidade que há em cada um deles. Esse conflito permanece até hoje, já que a vida está ligada à morte, e sempre haverá questionamentos, como: “Deus existe?”, ou “O que é esse vazio interior que sentimos?”.
Em outra passagem, há fortes críticas ao catolicismo. O que de início se tratava de uma alegre apresentação dos artistas Jof, Mia e Skat para divertir o público de um vilarejo, logo se contrasta com uma procissão de padres seguidos por fiéis carregando cruzes, se autoflagelando, e cantando um hino em meio a choros e lamentações. É a alegria e a diversão que nos faz esquecer os problemas da vida, e em seguida, o sofrimento na busca pelo perdão divino para o castigo da peste bubônica. Essa é, sem dúvida, a cena mais impactante do filme.
Sob o mesmo ponto de vista, é importante citar a conduta de Block, que questionava a fé e, consequentemente, a Igreja Católica. Tal atitude se mostra contrária à sociedade medieval, e à Igreja que intervinha, difundia ideias de forma dogmática e temerosa, fazendo as pessoas crerem na vida eterna e em Deus como única salvação. No entanto, próximo ao desfecho, ao deparar-se com a Morte silenciosa à sua frente, Block conclui que, de fato, não há como fugir, e se ajoelha, pedindo aos céus por uma salvação. Isso reforça como o ser humano, em momentos de desespero, sempre recorre à fé.
Próximo ao fim de O Sétimo Selo, Block reencontra sua esposa, e enquanto o casal está reunido na sala com outros personagens, a Morte adentra a casa. Sem possibilidade de escapar, todos aceitam o fim passivamente, menos o protagonista, que se entrega à uma última oração desesperada, em busca de respostas da existência de um Deus, ou de tranquilidade, em vista do destino inevitável; mas não obtém nada além do silêncio.
O mais surpreendente nesse desfecho é sabermos que a família de artistas, Mia, Jof e seu filho pequeno, foram os únicos que conseguiram driblar a Morte. Jof, quase sempre apalermado e de mente fantasiosa, na verdade era o único ali, com exceção de Block, que conseguiu ver a figura da Morte e fugir a tempo à noite, em meio à tempestade, salvando sua família de um final trágico. Para o diretor, eles representam a importância da Arte, incorporada na pura e ingênua família que vive por ela e para levá-la às pessoas. Fica aqui a reflexão de que talvez nossa única esperança seja mesmo a Arte como cura e salvação dos homens.
No final, eis que a Morte anda de mãos dadas, conduzindo Block e todos que estavam ali presentes em sua casa, em fila única, realizando uma dança da morte. Esse conceito foi aplicado pela Igreja na Idade Média em pinturas de capelas para recordar a população: “Lembre-se de que vai morrer”. Assim, todos saberiam que deveriam obedecer aos dogmas impostos pela Igreja para alcançar a redenção eterna.
Por fim, é importante reforçar que O Sétimo Selo, vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes em 1957, mesmo após 65 anos de seu lançamento no seu país de origem, a Suécia, continua sendo atual na sua defesa da Arte como antídoto à intolerância religiosa em tempos apocalípticos – sejam os da peste negra, de guerra, ou de pandemia, como vivemos no presente. A mensagem deixada por Bergman, com toda sua arte, é que devemos sempre ter esperança, ou um vislumbre de salvação, e isso é o estar aqui, vivendo. Disso, temos conhecimento, já do “Além”, nada sabemos.