Jamily Rigonatto
“–claro, – respondi
entendendo que o tempo
sempre leva
as nossas coisas preferidas no mundo
e nos esquece aqui
olhando pra vida
sem elas”
Quantas vezes na vida é preciso deixar parte de nós ir? E quantas vezes isso acontece até que não reste nada? Em O peso do pássaro morto, Aline Bei nos convida para integrar essas perguntas em sua poética questionadora, que desde o lançamento do livro em 2018, compõe o ar encantador habitante da crueldade. Em um retrato versado pelo gosto amargo de perder, a autora de Pequena coreografia do adeus e Rua sem saída apoia-se em palavras duras e sinceras para explorar o ato de se despedir, com toda sua naturalidade devastadora.
Publicado pela Editora Nós, o texto traz uma história comovente na qual a piedade fica por conta do leitor. Com uma escrita proseada e absolutamente fluida, somos guiados pelos caminhos de uma vida marcada pela morte de flores secas, depois de abandonadas. Através de sua protagonista, O peso do pássaro morto nos coloca para viajarem sonhos sem asas, dos quais a chance de voar para longe de uma grande gaiola atulhada de frustrações foi roubada pelo tempo.
Apresentada em primeira pessoa, a personagem de Bei não precisa revelar seu nome para nos ser tão íntima a ponto de conhecermos o mais silencioso de dentro dela. Sua urgência vive na narrativa que tem para contar. Em capítulos intitulados pelas idades em que conheceu o incontrolável ato de morrer – seja de forma literal ou na abstração –, ela desabrocha em vocábulos o tom angustiante existente em suas decepções, fracassos e traumas.
Ao longo das fases do livro, a escrita amadurece, e o que eram palavras de uma criança curiosa e cheia de perguntas carregadas de inocência, dá lugar para uma voz embargada e desesperançosa. A mudança na escolha lexical, no entusiasmo e na estrutura das frases a cada acontecimento significativo, cria uma atmosfera na qual o livro envelhece e se machuca junto de sua protagonista.
A autora sabe conduzir a oralidade de maneira única, e é fácil esquecer que O peso do pássaro morto se trata de uma leitura, pois assim, o som emitido pela protagonista se solidifica. Desta forma, os vários anos parecem se condensar em um espaço pequeno, mas totalmente completo por complexidade e sentimento. As 165 páginas construtoras da dor da anônima voam tão rápido quanto os pássaros deveriam ter feito.
“voltei pra casa chamando mãe,
– cadê o seu luís?
ela não tinha me contado nada porque achou que era muita morte pra eu saber de uma vez só.”
A menina que aos 8 encontra o significado da morte como fim da vida, a de 17 que encontra a morte no fim do controle de si mesma, e a de 18 que encontra a morte no começo da vida segue perdendo seus pedaços até os 52 anos. Todas as versões se cruzam para formar uma sobrevivente, e no piloto automático resiste uma mulher que, de tanto perder, abdicou do seu direito de sentir.
Em algum ponto de O peso do pássaro morto, o ser dá lugar ao existir, e os gostos, as vontades e os desejos da personagem são ofuscados por acontecimentos. A pergunta deixa de ser “quem?”, e se torna “quando?” e “onde?”. Calada por um medo e vergonha que não eram seus, mas passaram a morar em seu âmago à força, ela se esconde e passa a desconhecer o amor.
A relação com o filho é uma dos maiores conflitos abrigados pela mente da personagem, já que alguém vindo de seu sangue, na teoria da maternidade idealizada pela sociedade, é o amor mais verdadeiro e incodicional da vida de uma mulher. Entretanto, aqui ele representa um estranho com o qual se compartilha o mesmo teto. Por trás das barreiras, há feridas tão profundas que são incapazes de esconder a extensão do desespero.
“meu filho
arrumou 1 Estilingue não sei onde.
da janela do quarto
o lucas e os amigos
bolaram um plano de matar
passarinhos,
eles gostam de ver
brutalmente interrompido
algo delicado que estava em
Movimento”
Ao fim, O peso do pássaro morto está intrinsecamente ligado às mulheres e ao movimento dos corpos femininos transformados em objetos públicos para o mundo se sentir no direito de moldar. Em suas entrelinhas, o livro guarda a alusão a tudo que as mãos de uma mulher tem de soltar enquanto a alma carrega um peso latente e agressivo determinado pela trivialidade de ser.
Com simplicidade e brutalidade, o texto expõe os resultados dolorosos de cortes que continuam ardendo depois de estancar o sangue. Cada parte do livro revela como uma pessoa pode deixar se ser inteira cedo demais de uma forma cativante e aflitiva. Assim, perder não é sobre um objeto desaparecido. É sobre vida, ingenuidade, pureza, confiança e tudo que representa a fé, sumindo como o pássaro que é acertado pela pedra de um estilingue.