Vitória Gomez
Em Agosto de 2020, Alexei Navalny, líder da oposição russa contra Vladimir Putin, foi envenenado durante um voo para Moscou por Novichok, um composto produzido pelo governo nacional. Quase dois anos após o mal sucedido pelo ataque e uma estreia estarrecedora no Festival de Sundance 2022, o documentário joga luz no intricado e criminoso jogo político do leste europeu – ainda pré-Guerra da Ucrânia – a ponto de agraciar as morais estadunidenses: Navalny, obra que acompanha o opositor do Kremlin, recebeu aplausos ianques e uma indicação como Melhor Documentário no Oscar 2023.
Apesar da inevitável atmosfera de filme de espião, a mais de uma hora e meia de duração não é suficiente para desviar do fato que Alexey Navalny – pelo menos o retratado aqui – é um político. A produção acompanha seu protagonista desde o momento da tentativa de assassinato contra ele, através de filmagens de celulares e veículos locais – focando nos momentos de sua recuperação em Berlim e na retomada da atuação política e militante para fazer frente ao governo totalitário da Rússia -, até sua prisão em 2021, no retorno ao país. Por mais que os fatos digam por si só e a autoria do ataque seja praticamente inquestionável, Navalny se perde entre uma trama investigativa e o perfil de uma celebridade.
Na sequência de abertura, Navalny, sentado na bancada de um bar, pede ao diretor Daniel Roher que o filme em produção seja de espionagem, e não um memorial para o caso de sua morte. O político sabe fazer política: desde o início, o russo se porta como um personagem, ciente dos riscos que corre, e transforma a mídia e os holofotes em seus principais guarda-costas. Em trechos à frente das câmeras, ele mesmo afirma que, quanto maior sua plataforma e as pessoas que o vêem, mais estará seguro – no decorrer do documentário e da História, porém, seu erro é comprovado. De cara, o voto de confiança cega em Navalny é no mínimo questionável: produzido pelos Estados Unidos, a luz vermelha permanece acesa por todo o documentário.
Mesclada aos depoimentos do protagonista e de sua família – a esposa Yulia e os dois filhos do casal – e às entrevistas cara a cara com as lentes de Roher, as cenas de investigação assumem um caráter jornalístico que favorecem a condução e o tom de veracidade do longa. Aqui, o caráter e a unanimidade de Navalny enquanto figura política são questionáveis; os fatos em exposição, não. É nos momentos que coloca em cena o jornalista Christo Grozev, descobridor da teia de planos e dos capangas responsáveis diretamente pelo envenenamento, que o filme atinge seus picos positivos.
Parte da organização Bellingcat, de jornalismo investigativo independente, o CEO do portal explicita as etapas que o levaram a desvendar o esquema para o assassinato. Em uma das cenas mais decisivas para a investigação – e para o furor com o documentário como um todo -, o jornalista e o líder da oposição de Putin, ao lado de outros membros de sua equipe, se passam por um oficial russo e fazem um telefonema para um dos envolvidos no envenenamento, questionando o porquê do ataque falhar. A resposta é uma confissão detalhada, que, algumas edições atrás, poderia ser exibida nos telões do palco do Oscar. É nos momentos de Grozev em cena que Navalny se eleva ao almejado status de thriller.
Que as ações de Vladimir Putin no comando da Rússia são – no mais maniqueísta possível – totalitárias, a cobertura jornalística hegemônica e não hegemônica documentam. Navalny encontra sua fadiga justamente na contextualização da situação geopolítica, econômica e social sob as palavras da própria figura que batiza o filme. O envenenamento do líder é emblemático ao escancarar como uma relevante oposição russa é reprimida em prol da manutenção de Putin no poder; a prisão da figura, em mostrar como a repercussão internacional é recebida pelo Kremlin. Porém, a apropriação do cenário sob a narrativa de Alexey Navalny – diga-se de passagem, inevitável em qualquer discurso político – coloca os holofotes em um showman mais do que em sua luta democrática.
Apesar dos excertos inspiradores – como quando o advogado incita a continuidade da resistência mesmo no caso de sua morte -, a investigação vira subtexto ao passo que as lentes captam os depoimentos de Navalny. Claro, o documentário foi inspirado e acompanha a trajetória do líder político a partir de seu envenenamento – não por menos, foi nomeado com seu sobrenome -, mas, ao balancear o tempo de tela dos momentos de jornalismo investigativo e das cenas de Alexey falando diretamente para câmera, quase de igual para igual, o ‘filme de espião’ se amorna em uma entrevista perfil de uma celebridade.
No documentário, filmado secretamente, curtos e constantes trechos captam a vida do político em seus momentos de recuperação. Em seu exílio forçado em Berlim, cenas de Alexey e Yulia conversando e caminhando pela vizinhança, e dos filhos do casal testemunhando sobre o pai, declaram que a obra, realmente, não pretende tornar tudo sobre a investigação – o que melhor para os Estados Unidos do que um opositor corajoso, nobre e à altura de Putin? Aqui, tomando distância do juízo de valor sobre o atual governante russo e as atrocidades sociais e políticas cometidas no poder de uma das maiores potências bélicas mundiais, Navalny tampouco questiona a si mesmo.
A tentativa existe, mas não progride: o diretor confronta Navalny sobre seu passado, quando o opositor tendia à extrema-direita e marchou ao lado de ultranacionalistas e neonazistas – esquecendo de mencionar seu caráter xenófobo. Como pede o jornalismo, o político dá sua versão dos fatos: para ele, paradoxalmente, pouco importa quem anda ao seu lado, contanto que a caminhada seja rumo à democracia. Diante do panorama autoritário da Rússia, a resposta claramente engrandece seu mensageiro – sem cogitar que uma nova problemática surge em sua prática, ao colocar diferentes tipos de criminosos embaixo do mesmo guarda-chuva de heroísmo apresentado por Navalny.
No páreo ao título de Melhor Documentário pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, a produção investigativa concorre com All That Breathes, Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft, A House Made of Splinters e All the Beauty and the Bloodshed. Este último despontando como favorito ao troféu, uma vitória tornaria Navalny zebra na categoria – temáticas polêmicas anualmente são nomeadas, mas raramente levam a estatueta dourada. Com o resultado da premiação em aberto, porém, a obra ainda pode torcer: não é de agora que o Oscar ama retratos políticos – mas apenas os quais concorda com o posicionamento. Nisso, Navalny preenche os requisitos.