Ana Laura Ferreira
“Diana de Themyscira, filha de Hippolitya, Rainha das Amazonas”. Mas e se ela fosse mais do que isso? O que aconteceria se ela saísse definitivamente do santuário destas guerreiras gregas e se mudasse para o “reino dos homens”? Mesmo tendo provado um gostinho dessa adaptação da heroína à um novo cotidiano em Mulher Maravilha (2017), Patty Jenkins torna a trazer Gal Gadot no papel da matadora de deuses, mas dessa fez de forma muito mais habituada, orgânica e organizada em Mulher Maravilha 1984.
Ambientada, assim como o nome diz, na nostálgica década de 80, acompanhamos agora a jornada de Diana Prince já acostumada com as diferenças entre sua realidade e a nossa. Seguindo por um caminho muito mais direto e coeso, o longa se apoia na excelente atuação de Pedro Pascal – de Game Of Thrones e Narcos – para introduzir um vilão que é ao mesmo tempo complexo e caricato. Essa dualidade enriquece a narrativa que entende a importância de adaptar os personagens originais dos quadrinhos para a nova mídia, mas não os deixa perder sua essência.
O coeso desenvolvimento da relação entre o personagem de Pascal, o ganancioso Maxwell Lord, e Diana Prince consertou o que foi, para muitos, o maior erro do filme de origem dessa heroína. Com um terceiro ato falho, resolvido de forma abrupta com a inserção de um nada discreto Deus Ex Machina, o antecessor de Mulher Maravilha 1984 aprendeu com suas falhas e entregou um roteiro preocupado muito mais com a construção de seus personagens do que apenas com a pancadaria. Isso não significa que a elaboração desse novo capítulo seja perfeita.
Longe disso, o longa estende seu primeiro ato mais do que o necessário, desenvolvendo uma cansativa e interminável apresentação de personagens que atrasa o engate nessa história. Já quando o filme finalmente entra nos trilhos não há o que o pare. O arco bem delimitado abre caminho para que possamos entender as motivações de cada personagem e nos envolver profundamente com eles. É claro que todos ali têm algo a perder, e esse elo criado entre obra e espectador gera uma tensão gostosa de se acompanhar, que rende várias remexidas na cadeira.
E ainda que nos preocupemos com todos e desejemos saber toda a construção de cada um daqueles em tela, é óbvio que alguns teriam mais destaque do que outros. Roubando as cenas o, já mencionado, Max Lord é a grande amarração da trama. Porém, na tentativa de complementar uma história que já era mais do que suficiente, temos a introdução de mais um anti-herói: Dra. Barbara Minerva, a Mulher-Leopardo.
Trato dela como uma anti-heroína e não como vilã, como aparece nos quadrinhos, pois durante o filme conseguimos perceber suas motivações e, mesmo que nada justifique seus atos, é possível até compreendê-la. O grande trunfo, contudo, foi descartado sem mais nem menos como um simples adorno a essa composição repleta de pontas soltas e decorativas. O potencial dessa personagem não é nunca atingido, tornando ela, que poderia ser a maior estrela do filme, mero detalhe em meio aos desfechos.
Assim como qualquer boa produção que se passa na década mais colorida que já vivemos, Mulher Maravilha 1984 se debruça em cima da estética oitentista sem medo do excêntrico. E mesmo que às vezes pareça uma ambientação um pouco caricata, não podemos negar que todos os seus elementos são válidos. As cores vívidas e alegres contrastam com com temas pesados tratados de forma simples e óbvia.
Entre eles está o assédio. As dezenas de importunações que as personagens de Diana e Bárbara sofrem durante todo o filme são ora explícitas e ora sutis. O balanço entre essas duas exposições pode passar despercebido aos olhares masculinos, mas toda mulher que assistir ao filme vai captar e entender cada um daqueles momentos, vividos na pele por todas nós. O abuso explícito e velado incomoda por ser tão real quanto cotidiano.
Outra qualidade gigantesca do filme são suas cenas de luta perfeitamente coreografadas. Belas e dinâmicas, o balé dançado pelas personagens ajuda na criação de uma atmosfera quadrinesca aos melhores moldes da saga escrita por George Perez. E talvez seja pela presença de Pedro Pascal, ou talvez pela coreografia contrastada ao brilho do laço da verdade, mas é impossível assistir as cenas de luta de MM84 sem se lembrar de Kingsman: O Círculo Dourado (2017), mesmo que o filme da heroína seja absurdamente mais leve do que seus comparativo.
Forte, poderosa, líder e imponente, a Mulher Maravilha se tornou um símbolo de empoderamento e feminismo para milhões de mulheres ao redor do mundo. A heroína, fundadora da Liga da Justiça, se destacou aos olhos de todos por ser a personificação do poder feminino. Entretanto, a princesa das amazonas não vem atingindo sua plenitude como a guerreira mais badass da DC. A confortável muleta masculina que é Steve Trevor retorna em MM84 e, ao se aliar a uma tentativa de tornar o filme o mais leve possível para o público, nos priva de ter acesso a Diana gladiadora, a matadora de deuses, a amazona que conhecemos das HQs.
E apesar da promessa da diretora, Patty Jenkins, de explorar mais o universo mitológico da protagonista, o filme apenas apresenta um curto e descartável fanservice sobre as guerreiras gregas em seu início. O decorrer do longa, por outro lado, é recheado de cenas feitas simplesmente para dar volume a ele. Uso como exemplo as diversas passagens em que vemos Trevor fascinado com as maravilhas do “novo mundo”, sendo essa apenas uma réplica exata do mesmo fascínio demonstrado por Diana quando ela chega ao “mundo dos homens” no filme anterior.
Porém, grande parte dos defeitos do longa podem ser justificados pela alta expectativa criada em torno de Mulher Maravilha 1984. Lançado com mais de seis meses de atraso, o segundo filme da DC no ano veio comprometido a ser um complemento a Aves de Rapina na era das super-heroínas no universo da companhia. Os lances foram altos, mas nem todos atingidos dando ao filme, que tinha o potencial de ser tão magnífico quanto Aquaman (2018), apenas um pequeno gostinho de suas possibilidades.
Mulher Maravilha 1984 vem como um suspiro de alívio em meio aos cancelamentos e atrasos nos cinemas. Engraçado, cativante e belíssimo, o longa consegue cumprir com sua proposta narrativa, mesmo que para isso deixe de lado importantes pontos a serem explorados. Mas nem mesmo se houvesse uma enorme catástrofe em seu roteiro poderíamos negar a importância da presença de Gal Gadot e Patty Jenkins em meio as personalidades masculinas que prevalecem no universo dos super-heróis e na indústria cinematográfica.
Acima de tudo significativo, entramos em contato com uma Diana Prince mais humana, sincera e vulnerável do que nunca. Conhecemos um lado mundano da heroína que nos faz compreender o carinho inconsciente e apego que temos a personagem. A Mulher Maravilha símbolo está presente, assim como a Mulher Maravilha indivíduo e a Mulher Maravilha mulher, e em meio às inúmeras facetas, nunca foi tão fácil nos identificarmos na semideusa.