Gabriel Oliveira F. Arruda
É até um pouco difícil acreditar que demorou mais de uma década para que a Marvel introduzisse uma personagem obcecada com seu próprio universo. Diferente de Kate Bishop (Hailee Steinfeld), que viveu o sonho de encontrar seu herói e assumir seu manto em Gavião Arqueiro, Kamala Khan (Iman Vellani) precisa aprender a se virar sem a ajuda de nenhum dos Vingadores que passou a vida admirando, nem mesmo de seu ídolo, Carol Danvers. Mas isso não significa que Ms. Marvel esteja sozinha, já que seus verdadeiros super-poderes são a família e a comunidade.
Enquanto Cavaleiro da Lua tentou fazer de conta que se passava em uma realidade separada do MCU (616 ou 199999?), a nova produção da Casa das Ideias dispensa qualquer negação de interconectividade. Kamala é por si só uma stan da Marvel, herdando dos quadrinhos não só a adoração, mas também a vontade de ser parte desse celebrado (e até mesmo cansado) cânone. Ao invés de escrever fanfictions, ela cria vídeos elaborados baseados nas histórias que nós já conhecemos e faz cosplays caseiros de sua super-heroína favorita. A série, desenvolvida por Bisha K. Ali (Loki, Sex Education), tem a difícil tarefa de traçar a origem da personagem juntamente com seu lugar no panteão de semideuses do qual ela agora faz parte.
Na transição de meios, Ms. Marvel preserva muito do charme original de sua primeira tiragem, escrita por G. Willow Wilson e ilustrada por Adrian Alphona, mas acaba tropeçando na hora de condensar sua narrativa no formato de seis capítulos que se tornou padrão no Disney+. A necessidade de encaixar rapidamente a personagem na sinopse de As Marvels (2023) prejudica o ritmo da narrativa, que faria bom uso de mais alguns episódios para desenvolver seus antagonistas e sua relação com Kamala, principalmente por conta do quão apegados ficamos ao carisma gigantado de Iman Vellani.
Não seria muito exagero dizer que Kamala Khan é o Peter Parker de sua geração. Criada em 2013, a personagem logo conquistou os leitores da editora não apenas por conta de sua pegada bem humorada e personagens cativantes, mas por refletir os problemas da geração Z através de suas aventuras heróicas, contadas pelo olhar da primeira heroína muçulmana do selo. Nas HQs, sua polimorfia reflete as inseguranças de uma adolescente que não se encaixa em nenhum lugar e que, inicialmente, permite que ela pegue emprestado a pele de um de seus maiores ícones: a Capitã Marvel. Com o tempo, no entanto, ela aprende a ser sua própria heroína e assume a alcunha da nova Ms. Marvel.
Também não seria tão exagerado assim dizer que Iman Vellani é a Kamala Khan de sua geração. O entusiasmo da atriz estreante é palpável não apenas nas cenas em que ela se empolga com a possibilidade de ser parente do Deus do Trovão, mas também em todas as entrevistas e aparições feitas para promover a série. Ela prova que simplesmente nasceu para interpretar a adolescente de origem paquistanesa, e se revela um dos maiores trunfos de casting da Marvel em mais de uma década. Carismática e com uma atuação sincera e vulnerável, Iman poderia carregar tranquilamente as quase seis horas de duração da série.
Mas, é muito bom que não precise fazer isso. As maiores qualidades da série interagem no elenco secundário de Ms. Marvel, formando um dos núcleos mais engajantes da Fase 4 do estúdio: Nova Jérsei. Pois é, entre todos os mundos abertos recentemente pela franquia, não há lugar no universo (ou no multiverso) mais interessante do que a comunidade muçulmana e o cotidiano da família Khan apresentados pela produção. Particularmente durante os primeiros episódios, dirigidos pelo duo Adil & Bilall (Bad Boys Para Sempre, Batgirl) e Meera Menon (For All Mankind), fica até difícil tirar os olhos da tela para não perder o estilo gráfico da obra, que puxa de Scott Pilgrim Contra o Mundo e Homem-Aranha no Aranhaverso as ferramentas para trazer os quadrinhos à vida de uma maneira que nunca vimos antes no MCU.
Demora pouco para que os Khan se tornem nossa família favorita do MCU: é muito fácil se identificar com os problemas geracionais que Kamala tem com sua mãe, Muneeba (Zenobia Shroff) e seu pai, Yusuf (Mohan Kapur), além do repertório fácil e gracejante com seu irmão mais velho, Aamir (Saagar Shaikh). O tom de sitcom permanece ao longo dos primeiros episódios, Generation Why e Crushed, intercalando a comédia com momentos sinceros e até mesmo cotidianos, entre as personagens que fundamentam relacionamentos e o espaço em que eles se dão. A trilha sonora da compositora Laura Karpman também executa um duplo trabalho, intercalando os sons urbanos de Nova Jérsei com faixas pop do continente asiático, encontrando sinergia na performance energética de Vellani.
Além da família de Kamala, também conhecemos seus melhores amigos Bruno (Matt Lintz) e Nakia (Yasmeen Fletcher). Os espaços que frequentam, pessoas que gostam, suas opiniões sobre o mundo, super-heróis e mais, contribuem para a criação de um dos cenários mais críveis da Marvel nos últimos anos, sendo por si só uma resposta às críticas feitas ao uso excessivo de tela verde nas produções do estúdio. A celebração dos Vingadores à lá Comic-Con que acontece ao final do primeiro episódio é um baú de referências, rivalizando com o Vazio adentrado por Loki em Journey Into Mystery, e nos oferecendo, ainda, um vislumbre dos novos poderes de sua protagonista.
Seja pela contínua negação dos Inumanos no cânone do MCU, graças à desastrosa série de 2017, ou para melhor ajustar a personagem ao seu futuro filme ao lado de Brie Larson e Teyonah Parris, os poderes e a origem de Kamala mudam drasticamente na série, às vezes para bem e outras para mal. Ao invés de serem um reflexo dos conflitos internos da protagonista, eles agora fazem parte do mistério que ela tem de desvendar sobre si mesma. Embora adaptações sejam necessárias para trazer super-heróis das páginas para as telas e poderes de polimorfia em especial sejam complicados de se replicar no audiovisual (veja, por exemplo, qualquer filme do Quarteto Fantástico), havemos de nos questionar se tais mudanças seriam plausíveis para personagens de maior peso que precisam de muitos efeitos especiais: aceitaríamos um Homem-Aranha que não solta teias? Um Thor que não invoca trovões?
Além de estética, a mudança nos poderes da Ms. Marvel informa a direção da trama e como se diferencia das HQs, interligando sua jornada de autoconhecimento e aceitação com a busca pelo passado perdido da própria família para curar os traumas que persistem nas gerações de Khans. No terceiro episódio, Destined, Kamala toma conhecimento dos Clandestinos, seres extradimensionais buscando por uma maneira de voltar para casa, e de quebra descobre ser descendente deles. Embora a associação aos djinn do folclóre pré-islâmico seja por si só problemática devido à repetição de estereótipos orientalistas, a introdução do grupo evidencia o tema central da série e o paralelo com a assimilação cultural de famílias imigrantes.
Nos próximos capítulos, Seeing Red e Time and Again, viajamos junto de Kamala e sua mãe até o Paquistão, onde conhecemos Sana (Samina Ahmed), mãe de Muneeba e nomeada em homenagem à editora Sana Amanat, co-criadora da personagem, que também serve de produtora executiva do seriado. Dirigidos por Sharmeen Obaid-Chinoy, diretora paquistanesa conhecida por seu trabalho em produções documentais, esses episódios são parte vital da narrativa, pois fazem a ponte entre os dois mundos de Kamala, mas acabaram espremidos na duração cada vez mais limitante de episódios.
Justo quando estamos nos acostumando com o cenário suburbano de Nova Jérsei e a comunidade que cerca a jovem aspirante à heroína, somos jogados em um avião para Karachi, lar da outra metade de sua família. Lá, Ms. Marvel se debruça mais fortemente na procura da identidade cultural e nos traumas coloniais que persistem sobre os habitantes do sul asiático. Além de uma chocante recriação da Partição da Índia, também acompanhamos diversos diálogos iluminantes e dolorosos entre as três gerações de mulheres da família Khan.
Nos quadrinhos, o retorno da jovem ao país de origem de seus antepassados representa um período de introspecção após os eventos traumáticos da segunda Guerra Civil entre os heróis da editora. A transição no seriado ocorre de maneira mais mecânica e truncada, servindo primeiro como exposição à trama dos braceletes misteriosos que acordam os poderes da heroína do que aos conflitos e dúvidas internas da personagem. Enquanto em uma das narrativas a peregrinação ensina à Kamala que o lugar onde está não resolve os problemas, na outra ela descobre propósito.
Em uma série recheada de aspectos da cultura muçulmana da Ásia Meridional e detalhes, grandes ou pequenos, meticulosamente retratados, a recriação da Partição no penúltimo capítulo é, talvez, o mais ambicioso deles. Com um retrato visceral de um evento histórico pouco discutido no Ocidente, testemunhamos junto de Kamala o caos generalizado e os traumas decorrentes do fim do domínio colonial na Índia. Também acompanhamos a breve, mas tocante, história de amor entre Aisha e Hasan (interpretados respectivamente por Mehwish Hayat e Fawad Khan, astros de Bollywood), que termina tragicamente quando Najma (Nimra Bucha) aparece para reaver o bracelete. Enquanto desfalece, Aisha encara sua futura bisneta e repete o mesmo mantra gravado no artefato: “O que você procura, procura você”.
É nessa ponte tão instável entre passado e futuro que Ms. Marvel encontra sua razão de existir, dando à sua protagonista as ferramentas para remendar não só o tecido da realidade, mas também os rasgos entre mães e filhas. A sequência de episódios falha em desenvolver as motivações de seus antagonistas para além do básico, terminando abruptamente numa deixa apressada ao final da temporada. Apesar de vital para os temas desenvolvidos pela série, a viagem até Karachi é curta e objetiva demais para que nós nos apeguemos aos seus novos personagens, por mais que a ligação deles com a jornada de Kamala seja significativa.
Com a volta de Adil & Bilall na direção, o último episódio (intitulado No Normal, em homenagem ao primeiro volume das HQs que a inspiraram) retorna à Nova Jérsei para resolver as tensões entre Kamala e Kamran, o último dos Clandestinos na Terra e recipiente de poderes luminosos semelhantes aos da heroína. A dupla de diretores volta para retomar as melhores qualidades de Ms. Marvel em um capítulo explosivo que aponta seu olhar para a experiência imigrante na América, e joga os punhos gigantados de Kamala nas armas do Departamento de Controle de Danos, a agência obscura introduzida em Homem-Aranha: De Volta ao Lar, dedicada à conter as atividades dos super-heróis que pipocam pelos EUA. Não é uma analogia particularmente sutil ao tratamento do governo americano para com as comunidades muçulmanas, mas também não precisa ser, considerando a cruel realidade que a série busca retratar. Se a América não passa de uma caricatura vilanesca de si mesma, o que resta para a arte senão responder à altura?
É muito bom que a finale de Ms. Marvel não seja definido nem pelo visual de seus poderes ou sobre qualquer rótulo aplicado à sua origem, mas sim pelas verdadeiras qualidades que a produção emplacou: o carisma de Iman Vellani e a relação de Kamala com sua comunidade, amigos e até inimigos. A emoção de vê-la usando o icônico uniforme ou recebendo sua alcunha super-heróica não vem apenas de referências aos quadrinhos, mas de uma significação estabelecida na própria série. O que seria rotineiro é transformado em algo mais ao sabermos que aquelas roupas foram costuradas por sua mãe, que o significado de sua identidade secreta vai além de uma simples referência à sua super-heroína favorita.
Ao final do dia, Ms. Marvel é, assim como as histórias em quadrinhos que a inspiraram, a lenda de uma garota comum de Nova Jérsei descobrindo o próprio heroísmo e o lugar a que pertence. Mais do que tudo, é uma história sobre como o verdadeiro significado de comunidade está ao nosso redor: nas pessoas que amamos e protegemos, nos sacrifícios que somos obrigados a fazer pelo futuro, e os mantos que escolhemos usar para sermos nós mesmos. O que você busca está te buscando é a inscrição que adorna o bracelete de Kamala – um foreshadowing tanto da viagem no tempo, que possibilita que ela salve sua avó, quanto dos temas centrais da produção.
Está mais do que na hora de Kevin Feige e a Marvel Studios aprenderem a fazer televisão ao invés de filmes divididos em seis ou nove partes. Pela própria natureza contínua e interconectada do MCU, o número reduzido de episódios, geralmente associado a minisséries, representa um impedimento ao invés de uma vantagem. Somos introduzidos a personagens fascinantes e narrativas com muito potencial apenas para nos despedirmos após algumas semanas, sem saber quando iremos revê-los. Com o anúncio da volta de Charlie Cox no papel de Matt Murdock para um revival de Demolidor com 18 episódios, tomara que as futuras produções do estúdio voltadas para o streaming passem a ter espaço para deixar público e personagens respirando de vez em quando.
Uma das mais famosas frases associadas com a personagem de Kamala Khan vêm de Ms. Marvel #5 (2014). Enquanto monta seu icônico traje, ela recorda o pilar central de todos os quadrinhos: “Bom não é algo que se é. É algo que se faz”. Na série, o ditado vem do imã da mesquita que a família Khan frequenta, Sheikh Abdullah (Laith Nakli), durante uma breve conversa com Kamala, na qual ele a aconselha a olhar não para aqueles que duvidam da nova super-heroína de Jérsei, mas sim no bem que foi capaz de fazer e naqueles que salvou. Em seus melhores momentos, Ms. Marvel usa esse conselho como guia, nos fazendo vibrar pela mais nova estrela do MCU e por tudo aquilo que a rodeia.