Enrico Souto
Lil Nas X surgiu em 2019 já transgressor, explodindo com um hit chiclete que mesclou country e hip-hop, dois gêneros praticamente antagônicos, e ainda reivindicando-se como parte de ambos, apesar da insistente relutância da indústria. Old Town Road, sua primeira empreitada musical, desafiou as fronteiras arbitrárias impostas entre gêneros e enfrentou uma tradição racista e homofóbica que domina a música country até hoje. Ao mesmo tempo, claro, que tornou-se um viral instantâneo.
Ainda que críticos tenham alegado que não passava de uma moda passageira, o artista provou que tinha muito mais a oferecer. Depois de sair do armário no seu auge de popularidade, sua proposta disruptora só se fortaleceu. Desde então, quanto mais o desprezam e deslegitimam por sua sexualidade, mais ele faz questão de enviadescer aos holofotes. O ápice dessa rebeldia é MONTERO, o álbum de estreia de Nas X, revelando já no título, que carrega seu nome real, o caráter íntimo e autoral da obra, atravessada por temas como amor, sexo, homofobia, depressão e autoestima.
O início dessa era do rapper se deu em março de 2021, com o lançamento da faixa-título do disco, um trap com temperos de flamenco à la ROSALÍA. O seu subtítulo Call Me By Your Name, que alude ao livro e filme homônimo, uma das principais referências recentes de representação LGBTQIA+ na cultura pop, já antecipa a abordagem da canção. Lil Nas X decide se munir de signos bíblicos e estereótipos pejorativos relacionados a pessoas gays para reafirmar a própria identidade como tal.
Se propagam que gays estimulam depravação e são todos pervertidos, em vez de tentar rebater tais argumentos, ele veste a carapuça. O resultado é um deleitoso exercício estético e uma obra que deliberadamente choca a sociedade conservadora. Essa mensagem é reforçada no videoclipe, no qual Nas X transforma o conto de Adão e Eva em um épico camp, em que é julgado por suas libidinagens e desce por uma longa barra de pole até o inferno, onde faz lap dance para o diabo, o assassina e toma o seu lugar nas profundezas.
Como resposta, o artista passou a sofrer uma série de ataques e boicotes de grupos reacionários. O que, é óbvio, não impediu que Call Me By Your Name se tornasse mais uma febre em sua carreira. Evidentemente, Lil Nas X já antecipava essa investida e não arredou o pé. Pelo contrário, decidiu se divertir um pouco mais com a polêmica e lançou, em parceria com o coletivo de arte MSCHF, uma coleção de 666 pares de tênis da Nike, customizados com um pentagrama e literalmente sangue humano nas solas. Apesar dos problemas jurídicos que se seguiram, os pares esgotaram em menos de um minuto.
De todo modo, essa não é a única ocasião do álbum em que o rapper ressignifica rótulos violentos para erigir sua persona. SCOOP, com Doja Cat, é um culto ao corpo. Ao afirmar durante a faixa que “vem malhando” e que não se importa com papo, pois só está atrás de uma foda, ele se apropria de fetiches e estereótipos de virilidade, utilizados para hiperssexualizar e objetificar o homem negro, e toma o poder pleno de exerção de sua sexualidade. Sim, Lil Nas X é um ser sexual, cheio de desejos e muito tesão, mas agora é ele quem segura as rédeas.
Porém, é claro que não é apenas isso. Empregar essa estratégia à exaustão poderia banalizar esses signos e alienar o ouvinte a tais debates. Lil Nas X sabe disso e, portanto, decide tomar outro caminho. SCOOP antagoniza diretamente THATS WHAT I WANT, um pop açucarado guiado pela melodia viciante de um violão. Aqui, ao contrário de sua opositora, aborda-se um eu-lírico apaixonado clamado por viver uma história de amor. O videoclipe, que o mostra se relacionando com um homem comprometido, arremata tragicamente essa narrativa, expondo a frustração de Nas X e a iminente sensação de que alguém como ele estará para sempre destinado à solidão.
Na tracklist, ambas as canções tocam sequencialmente, e isso não é por acaso. Muito menos é por acaso o skit que convenientemente separa as duas. ART OF REALIZATION serve ao papel de contextualizar esse cenário, em que Lil Nas X se vê questionando a genuinidade de seus sentimentos, e revelando que essas não são emoções desagregadas, e sim que, pelo contrário, coexistem em um mesmo espaço e tempo. Isso posto, ele vai além de determinar-se unicamente como romântico ou devasso, mas como um ser humano multidimensional lidando com sentimentos complexos e muitas vezes contraditórios. E então, ao invés de tentar frustradamente racionalizar essa contradição, um exercício fadado ao fracasso, ele a abraça e transforma em poesia.
Nesse interlúdio, o cantor também pondera sobre o rumo que trilhou em sua carreira. Se tomou as decisões corretas e se essa de fato é a felicidade que ele almeja. Logo, em MONTERO, Lil Nas X versa reiteradamente sobre sua relação com a fama e as pressões da indústria. O momento que melhor encapsula essa angústia é ONE OF ME, com participação de Elton John – o que é simbólico por si só –, entregando seus teclados deslumbrantes como sempre. A faixa é inteira cantada sob o olhar dos haters de Nas X – uma maneira muito prática de traduzir suas ansiedades sem necessariamente verbalizá-las.
Aqui, ele demonstra bastante insegurança sobre algumas crenças a seu respeito que surgiram no início de sua popularidade. Como, por exemplo, que o sucesso de Old Town Road não passou de sorte, ou que seu trabalho não passa de uma piada, de um meme. Questões que Lil Nas X inclusive brinca e ridiculariza em outras ocasiões na obra, o que comprova que toda aquela pompa e convicção talvez não fosse tão sincera assim. Ou, porventura, fosse uma tentativa de velar suas inquietações.
De um jeito ou de outro, esses takes ousados, em que o rapper transmite maior confiança, formam, sem dúvidas, os momentos mais divertidos de MONTERO. Em DOLLA SIGN SLIME, à título de exemplo, Lil Nas X convoca Megan Thee Stallion para ostentar sua vida de luxo e os frutos de seu sucesso, em um trap estruturalmente básico, mas conciso. A personalidade aterradora dessas duas fortes figuras transborda por um beat enérgico e tônico conduzido por samples de trombetas, outorgando à faixa um aspecto quase heróico.
Seguindo a mesma harmonia de trombetas, agora em um caráter mais triunfante e celebratório, o hit imediato INDUSTRY BABY se encontra no apogeu da petulância de Nas X. Contrapondo-se a ONE OF ME, o rapper firma-se como fruto do atual cenário musical algorítmico e, desse modo, impõe suas vitórias sobre quem o deprecia. Assinada por Kanye West na produção, a faixa apresenta uma colaboração do rapper Jack Harlow, que até consegue se encontrar no beat e soltar versos decentes, porém fica difícil ignorar o quanto a sua postura exageradamente heterossexual destoa de forma drástica do cenário indecorosamente gay que Lil Nas X cria, tanto na música em si quanto no videoclipe.
Toda a divulgação dessa faixa enquanto single reforça a natureza responsiva de MONTERO, sempre reagindo ao seu contexto da maneira mais irreverente possível. No clipe, o artista é condenado por vender os tais “tênis do diabo” mencionados anteriormente. Depois de 3 meses preso, ele trama um plano para fugir, reúne um exército de presidiários gays e, com eles, se livra dos policiais e ocupa a penitenciária. Tal qual uma analogia do papel de Lil Nas X na indústria, ele bane a heteronormatividade branca literal e figurativamente para poder fazer música em seus próprios termos.
Contudo, apesar de Kanye West ser creditado em INDUSTRY BABY, é DEAD RIGHT NOW que parece buscar maiores inspirações em sua discografia, soando como uma versão abreviada de algo que Ye teria feito nos cortes mais extraordinários de My Beautiful Dark Twisted Fantasy. Lil Nas X cria sua própria epopeia musical, trazendo um coral de apoio e mesclando elementos de soul e gospel para originar uma sonoridade de escala incalculável e divina. Provavelmente a magnum opus do cantor, e com certeza a faixa mais intensa do álbum, tanto musical quanto tematicamente.
Isso porque, abrindo o LP junto a Call Me By Your Name e INDUSTRY BABY, DEAD RIGHT NOW introduz conflitos devastadores que serão pivotais ao cerne emocional do projeto. É aqui que Lil Nas X revela sua luta contra a depressão, e ouvimos diretamente de sua boca que seu sucesso foi a única coisa que o impediu de cometer suicídio. Além disso, ele também aborda batalhas que teve de travar dentro de casa ao se assumir gay para sua família. Apesar disso ter fortalecido seu relacionamento com o pai, não é possível dizer o mesmo sobre sua mãe. Nas X coloca em xeque a legitimidade do amor de sua progenitora que, já sofrendo de alcoolismo e abusando física e psicologicamente do filho, se voltou contra ele e declarou, de acordo com a canção, que Deus jamais o perdoaria.
A relação tortuosa de Lil Nas X com sua mãe é objeto de frequente abordagem em MONTERO, retratando ela como essa figura opressiva que, apesar do rapper nutrir um ódio e ressentimento justificados, ainda não consegue deixar de buscar validação nela. Esses atritos ganham forma em TALES OF DOMINICA, onde Nas X medita sobre o quão sufocante é estar no centro de uma família disfuncional e seu desespero em apenas esquecer tudo e deixar essa vida para trás – esforço, é claro, frustrado. A faixa destaca-se por um tratamento lírico mais emblemático e alegórico, sem se ater a tantas minúcias e mais preocupado em propiciar, por meio de uma sonoridade bucólica e idílica, uma experiência sensorial que possa transmitir suas emoções em sua íntegra crueza.
TALES OF DOMINICA ainda compõe um momento crucial de MONTERO quando, na segunda metade do disco, o artista vence seu medo e decide desbravar diferentes facetas e estágios de sua vida, abrindo e desvelando feridas antes encobertas – no que provavelmente é a demonstração de fragilidade mais visceral de sua carreira. Logo após essa faixa, somos transportados à SUN GOES DOWN, que descreve um Lil Nas X no princípio da adolescência, entrando em contato com sentimentos novos e confusos, enquanto também lida com o bullying e racismo, e, por não conseguir entendê-los, cultivando sobre si uma imensa culpa e auto-ódio.
Embora discorra aqui sobre temas extremamente pesados e delicados, a faixa tenta carregar uma mensagem de esperança. Ao contrário do resto da canção, o refrão é cantado a partir de sua perspectiva atual, já crescido e amadurecido, revisitando seu eu do passado e tentando lhe trazer fé, garantindo por sua própria experiência que as coisas hão de melhorar e que, mesmo nos tempos mais difíceis, a dor nunca dura para sempre. Leitura essa que confirma-se com o videoclipe, que exibe um Lil Nas X mais jovem sofrendo por estar sozinho no baile da escola, e uma versão celestial sua descendo dos céus para confortá-lo.
Algo parecido ocorre em VOID, a faixa seguinte. Ela inicia com uma declaração, como a abertura de uma carta, onde Lil Nas X refere-se a uma versão pregressa sua, quando ainda começava a apostar suas fichas na música. Porém, ao evidenciar esse eu-lírico desesperançoso, emocionalmente em frangalhos, a música soa dúbia sobre qual ponto de vista ela parte. Sobre se esse sentimento de vazio descrito aqui diz respeito ao seu eu do passado ou do presente – talvez a ambos. Por isso mesmo esse é o recorte mais sincero e vulnerável de todo o disco. Pois é nesse ponto que Nas X confessa que essas não são feridas pretéritas: são dores vívidas que, querendo ou não, ele continua lutando para superar.
Depois de um testemunho tão lastimoso e desolador, e se aproximando da finalização de MONTERO, é difícil imaginar como Lil Nas X concluiria seu arco. Se ele partiria para uma resolução otimista, ou se ele seguiria por um caminho mais trágico. Bom, sendo coerente com o conceito dualístico do álbum, ele faz os dois. O primeiro indicador de um ultimato é a frenética e poderosa DONT WANT IT, onde Nas X exorciza seus demônios, entra em paz com suas imperfeições e entoa que, independente do quão sombrio esteja, “tudo vai ficar bem”. Seria uma conclusão potente, catártica e absolutamente apropriada para a obra.
Mas não. Lil Nas X decide cavar mais fundo em LIFE AFTER SALEM, a contribuição do disco para a música emo. Tematicamente semelhante a DONT WANT IT, mas nascendo de um princípio totalmente oposto, essa faixa é um verdadeiro grito de angústia, em que o cantor parece dirigir-se diretamente aos seus traumas, implorando aos berros para que eles vão embora. O instrumental de rock soturno, invadido no final pela melodia tensa dos violinos arranhados, manifesta um estado de espírito excruciante e verdadeiramente apocalíptico.
No entanto, sem valorizar nenhum dos dois pólos, MONTERO finaliza com um banho de água fria. AM I DREAMING, mais um ponto para Lil Nas X no bingo de colaborações com a família Cyrus, fecha o disco em um tom melancólico, porém ambíguo. Ele não tem a firmeza para declarar que não haverão mais infortúnios na vida, nem consegue comprovar que realmente tudo está perdido. Portanto, o que lhe resta é a dúvida. O que há do outro lado? Nem ele, nem nós sabemos. Mas o cantor se voluntaria a segurar nossa mão para que possamos, assim, descobrirmos juntos. É um desfecho digno e glorioso, com a presença da voz austera de Miley e seu histórico controverso na Música acrescentando novas e ricas camadas à faixa.
Verdade seja dita, MONTERO é um projeto alicerçado em seu conceito estético. Desde a capa vibrante, que mistura surrealismo com uma linguagem visual renascentista, até os excêntricos videoclipes, pautados em uma estética queerfuturista cheia brilho, glamour e purpurina, referenciando ícones recentes da cultura queer, de Brokeback Mountain a Love, Simon. Seu audiovisual impactou toda a indústria e lapidou imagens que estão entre as mais icônicas de 2021, sendo finalmente recompensado no Grammy 2022 com uma indicação a Melhor Videoclipe para o grandioso vídeo de MONTERO (Call Me By Your Name).
A musicalidade do LP é sem dúvidas um destaque também. No caso, coube ao duo de DJs novaiorquinos Take A Daytrip a função de produção executiva – seu maior desafio até então. E o resultado aqui é sublime. Sua produção é colorida, misturando um espectro extenso de sons em uma ecleticidade nunca antes vista pela dupla. Seguindo a lógica de abolição de barreiras musicais definida em outros projetos de Nas X, eles exploram gêneros completamente distintos – do flamenco na faixa-título ao punk rock de LOST IN THE CITADEL – e, entretanto, continuam capazes de constituir um padrão sonoro facilmente discernível.
Visto isso, talvez justamente por essa negação de rótulos do projeto, tornando consequentemente – e propositalmente – seu processo de categorização mais complicado, que apesar de ter sido reconhecido pela academia do Grammy e incluído na maioria das categorias principais neste ano – Álbum, Canção e Gravação do Ano –, o disco MONTERO não recebeu nenhuma indicação em categorias de gênero. Salvo a única exceção de INDUSTRY BABY, citado em Melhor Performance de Rap Melódico. Dito isso, é incontestável o evento cultural que o disco promoveu e seu decorrente sucesso comercial, emplacando 11 de suas faixas na Billboard Hot 100 em sua primeira semana de lançamento.
É um reconhecimento merecido para um projeto único e autêntico, com um apelo inegavelmente pop, mas que ainda assim carrega uma autoralidade e assinatura característica de Lil Nas X. Em MONTERO, o cantor decide se despir ao público, apresentado-nos, desta vez, Montero Hill, em todas as suas falhas e defeitos. Retrata-se não um processo concluído de cura, mas a alçada por ela, propiciando então, através de suas experiências com opressões estruturais, o início de uma poética metamorfose coletiva. É o mais honesto que uma obra artística pode alcançar e, mesmo que relate cenários pessoais, é fácil se identificar com qualquer um deles, porque Nas X assume em seu manifesto paradoxos e contradições inerentes à experiência humana.
Trata-se de um álbum divertido e contagiante, embora simultaneamente trágico e comovente. Repleto de dores, mas que não ignora os prazeres quando surgem. Fato é que não somos nem inteiramente formados por nossas alegrias, muito menos definidos apenas por nossos traumas. Somos quem somos, instáveis, turbulentos, e permitidos à mudança. MONTERO acolhe essa ideia com muita extravagância e ternura, instituindo-se como uma das obras mais sensíveis que o pop e o rap proporcionaram em 2021. E a única conclusão que pode-se chegar ao fim é que, não importa o quanto tentem boicotá-lo ou reduzi-lo, Lil Nas X é exatamente o que a indústria precisa.