Davi Marcelgo
Ex-espiões que se voltaram contra organizações, agentes duplos, traficantes de armas, bombas nucleares e risco biológico. Ethan Hunt (Tom Cruise) enfrentou todo tipo de perigo desde que a história se iniciou em 1996, mas nem ele nem o público estavam prontos para a missão do sétimo filme da franquia: deter uma Inteligência Artificial.
Na trama de Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1, uma IA chamada Entidade desenvolveu consciência e desapareceu sem deixar pistas. Sabendo do poder furtivo da máquina, várias nações iniciam uma corrida para encontrar duas chaves que, juntas, podem controlar a arma. O rebelde Ethan Hunt e sua equipe nadam contra a corrente para impedir que esse poder caia em mãos erradas, ao mesmo tempo que precisam lidar com as armadilhas da tecnologia.
A Marvel e outras dezenas de blockbusters americanos sobrecarregaram nossos olhos de telas verdes, bonecos de CGI não finalizados e, recentemente, com a série Invasão Secreta, o uso de Inteligência Artificial para produzir a abertura. Tom Cruise, juntamente com o diretor Christopher McQuarrie e toda produção da ação, lutam contra essa nova onda e fazem Cinema com efeitos práticos, paciência, talento e coração.
Não que o uso de CGI seja abominável. Filmes maravilhosos contam histórias maiores que a vida graças ao recurso, como é o caso de Avatar: O Caminho da Água. O zelo aos detalhes e a evocação do charme dos efeitos práticos é escassa em tempos de algoritmos em Hollywood e, quando um Acerto de Contas surge com esse cuidado, torna-se inviável não elogiar. Isto diz muito dos ‘pais’ que conceberam a obra: Tom Cruise, que também é produtor, se preocupa com a IA e McQuarrie descartou a ideia de rejuvenescer digitalmente os atores por achar que o processo está numa fase insatisfatória e preferiu priorizar outros conceitos do longa.
A grande sequência de ação deste capítulo é o salto de moto na montanha que culmina em uma explosão de trem. Para alcançar o efeito desejado, o astro de Hollywood pulou 500 vezes de paraquedas e 13 mil de motocross, enquanto a equipe teve que construir uma rampa gigantesca e seu próprio trem para simplesmente explodi-lo. O objetivo? Tornar tudo mais prático e real, nas palavras do diretor. A execução não poderia ser melhor: filmando de dia, o que é bom, já que a claridade ajuda na compreensão da coreografia, e sabendo conduzir espacialidade e a tensão de lutar em cima de uma locomotiva, o diretor aproxima o espectador das histórias impossíveis que o Cinema já contou.
Inclusive, o making-off do filme é um show à parte. É interessante ver todos os aparatos e ideias construídas especialmente para este longa, que envolve artistas e especialistas das mais diversas áreas, com estudos e práticas em matemática e engenharia. Com a produção, é possível ampliar o conhecimento sobre essa Arte tão coletiva e compreender noções de empregos e economia que o Cinema gera.
Embora a franquia de Ethan Hunt tenha uma legião de fãs e seja sinônimo de um ótimo Cinema de ação, ela ainda não tinha recebido nenhuma indicação ao Oscar. Em 2024, isto mudou e a Academia indicou Missão: Impossível 7 nas categorias de Melhor Som e Melhores Efeitos Visuais, ambas merecidíssimas. Sem um Avatar neste ano, a equipe formada por Alex Wuttke, Simone Coco, Jeff Sutherland e Neil Courbold tem ótimas chances de levar o prêmio, porém tem um gigante no caminho, Godzilla: Minus One (2023) que, apesar do baixo investimento, segue com favoritismo na categoria de efeitos.
Existem outros destaques para além de preferências técnicas: a escolha da vilã tecnológica é sagaz em vários níveis. Dentro da franquia é uma novidade, já que todos os antagonistas anteriores são humanos. Outrossim porque é fruto do nosso tempo, embora o filme tenha sido rodado em 2020, quando as discussões sobre Inteligência Artificial não tinham a possibilidade de ser tema de ENEM, é impossível não se identificar ou temer a máquina, afinal a ameaça é próxima de nós. E o mais legal: a tecnologia é a imagem e oposição perfeita de espiões e em particular, de Ethan Hunt. Ela entra em lugares sem deixar rastros, é rebelde, a espiã perfeita, mas diferente do agente, não forma laços.
Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1 pincela paralelos entre o protagonista e a máquina sem verborragia, não num estilo ‘Olha, Ethan Hunt, ela é sua versão do mal!’. Longe disso, enquanto outros personagens explicam as potencialidades da inovação, o agente secreto está por baixo das cortinas ‘riscando’ a checklist de semelhanças, maneira engenhosa de fazer o traço sem precisar de uma entediante explicação sobre a motivação do vilão. Ainda, finaliza a cena de forma surpreendente – apesar dos fãs estarem acostumados com o elemento que já virou adjetivo da série de filmes, consegue tirar um sorriso do rosto da audiência.
Em nenhum outro Missão: Impossível Hunt esteve tão vigorante. Para pessoas que nunca assistiram a franquia, começar a obra com o herói saindo das sombras à la Batman é um imenso acerto para construir uma persona lendária para a personagem. Continuando o versus de agente humano e agente máquina, Ethan é visto aqui como fenômeno da natureza, imparável e incorruptível. Quando ele corre ao som de I Was Hoping It’d Be You, trilha composta por Lorne Balfe, com intensidade e potência cênica, a corrida se equipara ao mito de Atalanta. Decerto, a melhor entrega de Tom Cruise na franquia e o maior destaque também.
O longa deixa a sobremesa toda para a segunda parte, mas com espaço para aproveitar o prato principal. A primeira parte foi encerrada e deixou várias pontas soltas difíceis de adivinhar o que vai vir no próximo capítulo (para um filme de espionagem, a dúvida é uma ótima amiga). Sustentando sua própria história, sem deixar aquela sensação de ‘ser um prelúdio que te prepara para um evento que vai ser maior’.
Como toda obra de ação que se preze, Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1 é frenético e não dá tempo para ninguém respirar, entregando sequências explosivas, uma atrás da outra e todas espirituosas e diferentes. Tem submarino naufragado, troca de tiros no deserto, desafio de decifrar enigmas, luta de espada, locomotiva desgovernada, e de praxe, perseguição de carro sem dublê.
Missão: Impossível evoca outros sub-gêneros, como por exemplo na cena do submarino. A obra traz para si elementos de filmes de guerra, com termos e codinomes que o espectador não entende, mas compra a ideia porque é irado ver a inquietude de uma embarcação marítima prestes a dar de frente com um míssil. Nesta espionagem, a produção recria um romance em Veneza, em que dois espiões se amam e nunca vão ficar juntos. A cidade das gôndolas não os une para amar, mas para enfrentarem uma missão impossível entre os passeios românticos de barco e o crepúsculo triste da cidade italiana.
Hunt e Ilsa (Rebecca Ferguson) são o Romeu e a Julieta da franquia, mas longe de ser como a ex-parceira do agente, Julia. Esse casal, que nunca chegou a ser um, é um ótimo fio condutor para nos importarmos com os riscos da equipe do IMF e fazer o que nenhuma IA jamais conseguiria: conectar pessoas. O elenco todo é ótimo, mas Rebecca Ferguson (Duna) entrega a elegância que filmes de espionagem possuem. Até suas composições de luta são pensadas para entregar classe que, combinadas a atriz, formam a unidade necessária. Ela se encaixa perfeitamente em sua personagem, executando-a de forma brilhante.
O sétimo filme da saga é um refresco no meio de tantos fast-foods de ação. Ele explora mecanismos de narrativa como o dispositivo MacGuffin, um objeto/objetivo que dá o pontapé para a história acontecer, porém, sem deixar o recurso de lado, sustentando força e importância durante quase 3 horas. Sem dúvidas, o longa é um agente secreto infiltrado em Hollywood para – tentar – mexer as peças do jogo. Pretendendo elaborar um exercício de Cinema, narrativa e suas tecnologias. Aqui, tudo é pensado para estimular o público a sentir o perigo nas peripécias da equipe do IMF. A próxima missão para Tom Cruise, McQuarrie e todo o time é fazer a franquia perder gás. E nessa tarefa, Ethan Hunt será rebelde mais uma vez.