A revolução que Jogos Vorazes iniciou completa uma década

“E que a sorte esteja sempre ao seu favor” (Foto: Reprodução)

Anna Clara Leandro Candido

Durante a primeira década do século XXI, o mundo cinematográfico e literário foi tomado por grandes franquias. Desde a representação de uma sociedade bruxa até um mundo pós-apocalíptico, as histórias sobre revoluções com ruptura de padrões antiquados e preconceituosos estavam captando cada vez mais a atenção dos jovens-adultos. Incentivando-os a lutar por uma sociedade melhor e mais justa, tomar a iniciativa e se levantar contra as injustiças. Dez anos atrás, o livro Jogos Vorazes chegou ao Brasil trazendo consigo esses mesmos conceitos.

A saga de Suzanne Collins envolveu em seu cerne esses ideais e apresentou aos jovens leitores uma história repleta de filosofia, política, jogos e armações, sem nunca subestimá-los. Conquistando uma grande base de fãs ao redor do mundo, a obra marcou sua presença na grande onda de narrativas distópicas que tomou o mercado literário. É uma história de jovens para jovens, sem medo de debater os mais diversos e complexos assuntos que a humanidade pode apresentar.

A narrativa se passa em um futuro distópico, no país chamado Panem, dividido em 13 distritos e uma Capital. Após uma rebelião, o décimo terceiro distrito foi bombardeado e, como retaliação, o governo criou uma grande competição anual chamada de Jogos Vorazes. Neste evento, cada um dos doze distritos remanescentes deveriam sortear uma garota e um garoto, entre doze e dezoito anos, para serem enviados a uma arena. Lá, os jovens serão obrigados a matar uns aos outros até que apenas um permaneça vivo.

O primeiro livro da saga ficou na lista dos best-sellers do The New York Times por mais de cem semanas (Foto: Reprodução)

Esse horrível show é a maneira que a Capital encontrou de dividir o país e prevenir outra revolta, ao mesmo tempo que impõe medo aos cidadãos. Durante a 74° edição do Jogos Vorazes, Prim, a irmã mais nova da personagem principal, Katniss Everdeen, é sorteada para ser o tributo feminino do distrito 12. Desesperada para salvá-la, Katniss se oferece para lutar na arena no lugar da irmã e, sem saber, dá o primeiro passo na jornada que irá transformá-la  no símbolo de uma revolução. 

Suzanne Collins valeu-se das filosofias e mitos greco-romanos para construir a sociedade da saga. Ela se inspirou na história grega O Labirinto do Minotauro para desenvolver os Jogos e o nome do país vem da antiga frase usada nos coliseus, Panem et circus, traduzindo-se como pão e circo. Deste modo, a autora foi capaz de criar uma obra que transforma contos históricos em uma ficção capaz de criticar e refletir sobre a sociedade do século XXI.

O  entretenimento e os altos padrões que permitem os cidadãos da Capital aplaudirem tamanho horror são apenas um reflexo do mundo real. O pão e o circo eram dados aos romanos para distraí-los dos assuntos políticos e importantes da cidade, para que ignorasse as injustiças que os cercavam. Hoje, essa mesma estratégia é usada para dividir e conquistar nossa sociedade, manter a hierarquia entre aqueles que vomitam para comer mais e os que não possuem uma migalha sequer de pão para passar o dia.

A saga é o tipo de ficção com potencial para se tornar realidade. Ela prova como o cerne de um sistema injusto pode sobreviver mesmo em um formato diferente e até que ponto a ignorância e crueldade humana podem chegar. Tudo isso, narrado e divulgado para um público jovem-adulto, os responsáveis pelo futuro da humanidade. Jogos Vorazes tem como objetivo abrir os olhos dessa geração e debater todos os assuntos relevantes que necessitam mudar no mundo atual, e faz isso de uma forma excepcional.

É um gesto antigo e raramente usado de nosso distrito, ocasionalmente visto em funerais. Significa graças, admiração, significa adeus a alguém que você ama (GIF: Reprodução)

No livro um da saga, o leitor é apresentado ao universo de injustiças que cercam Panem. Primeiro, conhecemos o distrito doze e o cotidiano de seus cidadão, um lugar triste e cinza, onde a vida há muito tempo se esvaiu. Katniss o descreve a cada caminhada que dá nas ruas de sua comunidade, fala dos corpos das pessoas que morreram de fome jogados na rua como um lixo qualquer, do Prego – o mercado ilegal do distrito -, e como até mesmo aqueles considerados ricos no local sofrem perante tamanha desigualdade.

Depois, Katniss e o leitor são levados à Capital. Uma cidade de luxo e regalias, cercada por seus arranha-céus e cidadãos com as mais exóticas roupas e pinturas de rosto. O local é sustentado pela produção dos distritos, seus moradores se preocupam apenas em comer bem, estudar, comentar sobre política e ocupar suas horas com qualquer entretenimento que o governo tem a oferecer.

Essa realidade poderia facilmente ser a descrição do centro de uma cidade e seu subúrbio. Dois locais reais que se encaixam perfeitamente na descrição fictícia de uma país injusto e desigual. Suzanne Collins utiliza sua escrita para levar o leitor a uma autocrítica da própria sociedade e, através dos olhos de Katniss, ensina uma lição que a muito tempo está sendo apagada da mente dos jovens pelas propagandas e ilusões: empatia.

Na sequência Em Chamas, Collins aprofunda outra vertente de sua crítica social: o jogo de imagem e a manipulação televisiva. Se antes a principal preocupação de Katniss era sobreviver às ameaças físicas que a Arena trazia, agora ela tem que atuar para as câmeras como a figura pública da Capital. Nesse segundo livro, os personagens jogam com suas imagens e popularidade, mostrando a repercussão que um discurso ou sorriso da pessoa certa pode ter para incendiar ou abafar uma inevitável revolução.

Outra característica retirada da sociedade moderna. Quantas pessoas não seguem cegamente aquela figura carismática que aparece na televisão ou internet? A imagem que muitos constroem ao se exporem em um canal de comunicação pode conquistar milhares a seguirem ela, muitas vezes sem nem mesmo questionar se aquilo que estão vendo é verdade. Collins alerta seu leitor para tomar cuidado com o que é mostrado a eles, ensina-os a serem críticos. 

Em A Esperança, toda a tensão e dor construída no decorrer dos dois primeiros livros é finalizada em uma grande e épica batalha, na linha de frente e na política. Mais uma vez, a autora expõe em sua obra a influência da imagem e dos meios de comunicação no destino da população. Collins mostra que toda guerra é construída com soldados e armamentos, mas também com propaganda.

Uma guerra política e publicitária é construída entre o Distrito 13 e a Capital. Katniss é mais uma vez arrastada para a frente das câmeras, mas dessa vez para ser o símbolo da Rebelião e unificar os distritos. Enquanto isso, o presidente Snow manipula Peeta para contrapor a Garota em Chamas, tentando impor sob ela a imagem de uma ameaça para seus aliados e inimigos.

“Toda revolução começa com uma faísca” (GIF: Reprodução)

Na saga, os personagens utilizam de pequenos vídeos propagandas, chamados proto-pops para fazerem suas jogadas. Já hoje em dia um celular com câmera e acesso à internet é capaz de criar um jogo político tão complexo, ou mais, quanto o de Katniss. Ser jovem em um mundo lotado de informações faz com que a criticidade e o discernimento sejam a principal habilidade para filtrar a verdade da mentira.

Jogos Vorazes revolucionou não só dentro de sua própria história, mas também fora. Os livros trazem como protagonista uma garota de dezesseis anos, corajosa, introvertida, determinada e que também é a principal provedora de sua família. Katniss Everdeen foge de todos os estereótipos impostos à uma personagem feminina pela sociedade. E, pode não ser a primeira, mas é uma das maiores referências contemporâneas para a nova geração de meninas e meninos que cresceram lendo sua história.

“Se nós queimarmos, você queimará conosco” (GIF: Reprodução)

Katniss é alguém capaz de inspirar aqueles ao seu redor sem nem perceber. Quando seu pai morreu e a mãe entrou em depressão, ela foi obrigada a carregar o peso de cuidar sozinha da irmã mais nova, arriscou a vida na floresta para buscar alimentos, aprendeu a caçar usando um arco e flecha e se reconstruiu das cinzas.

Passar por todas essas provações, fizeram-na levantar barreiras protetoras ao seu redor. Contudo, Katniss nunca deixou sua bondade de lado. Ela pode ter se escondido atrás de uma cara séria e atitudes rudes, mas, acima de tudo, sua honestidade fazia com que sua generosidade e verdadeira força transparecessem, quer soubesse ela ou não. 

Foram essas as qualidades que iniciaram a primeira centelha de toda uma Revolução. Quando ela sobe naquele palco pela irmã, Katniss não só ensina ao seu povo o que é amar e lutar para proteger aqueles importantes para eles, mas também ensina o leitor a admirá-la e querer ser como ela. Alguém capaz de dar um passo à frente, mesmo contra todas as chances, e lutar pelo que acredita, num ato altruísta e corajoso.

“Ela não faz ideia do efeito que causa” – Peeta Mellark (GIF: Reprodução)

Mesmo que a realidade de Katniss seja lutar até a morte em uma arena contra vinte três outras crianças e a nossa seja, no máximo, lutar por uma vaga na faculdade ou no emprego, sua história ainda é capaz de passar outra importante mensagem para o público: autenticidade. A garota em chamas nunca quis ser o símbolo de uma revolução, ela só queria salvar sua irmã da morte e retornar para casa. Mas a responsabilidade foi à ela delegada e, ao invés de fugir, Katniss escolheu aceitar e incorporar aquela centelha de esperança e coragem que levou ela a se oferecer como tributo e lutar por seu país.

Entretanto, no decorrer da jornada, Katniss sofre diversas tentativas de manipulação. Seja por parte da Capital, que quer mostrá-la como ninguém mais do que uma garotinha apaixonada e inocente, ou por parte dos rebeldes, que querem transformar uma garota de dezesseis anos no símbolo de força e resistência da revolução. Para que possa sobreviver, ela é forçada várias vezes a representar diferentes papéis em frente às câmeras.

Suzanne utiliza Katniss para refletir sobre a sociedade em que vivemos hoje e faz de sua personagem principal um modelo a se seguir. Não alguém infinitamente corajosa e determinada e não apenas uma pessoa assustada e ordinária, mas ambos. Um ser humano assim como qualquer outro, mas que escolheu se livrar das correntes de expectativas impostas à ela e decidiu quem quer ser. Em diversos momentos da saga Katniss desempenha o papel que é dado a ela pela Capital e pela rebelião, contudo, quando chega a hora da decisão final, ela sempre segue seu coração.

“Que a sua pontaria seja tão precisa quanto a pureza do seu coração” (GIF: Reprodução)

Jogos Vorazes é uma saga repleta de bons personagens, cada um traz um ponto de vista ou uma reflexão diferente sobre os acontecimentos da trama, tornando-os muito importantes para a construção da história. Um deles é Peeta Mellark, o tributo masculino que foi escolhido para ser enviado à Arena junto de Katniss. Os dois são opostos um do outro: enquanto a Garota em Chamas é mais distante e uma pessoa de ações, o padeiro é gentil e bom com as palavras.

Essa dualidade entre eles contribui para uma química natural, onde cada um acrescenta algo ao amadurecimento do outro. Peeta passou por dificuldades diferentes das de Katniss, mas tão duras quanto. Contudo, ele ainda manteve sua personalidade carinhosa e empática. Ele é o porto seguro dela, a prova de que, não importa o quão ruim a situação fique, ainda podemos ser bons, temos de ser. Essa característica dele criou raízes não só coração da Garota em Chamas mas também no dos leitores, ensinando-os a perseverar.

Em comemoração aos dez anos da saga, um novo livro foi lançado, apresentando num prelúdio a história do “vilão”, o presidente Snow. A Editora Rocco também celebrou o aniversário da trilogia lançando um box comemorativo (Foto: reprodução)

Peeta no, entanto, também é parte do triângulo amoroso de Katniss e Gale, o melhor amigo da garota. Por mais que Jogos Vorazes debata temas importantes e sérios, a saga ainda dialoga com um público juvenil, portanto, possui um arco romântico. O desenvolvimento amoroso é trabalhado no decorrer da saga mas não se torna o foco principal da narrativa, muito pelo contrário. Suzanne Collins utiliza-o para trazer mais uma analogia à trama.

Enquanto Peeta representa uma abordagem calma e passional para com suas decisões e atitudes, Gale é, desde o começo, um rebelde de coração. Ele é quem traz o fogo da Revolução em seus comportamento e atitudes, e quando Katniss é escolhida como Tordo, é ele quem ajuda ela a ter coragem para seguir em frente, quem mostra as razões para lutar. Mas ele também representa o que pode acontecer quando esse fogo, que arde dentro de nosso peito perante uma injustiça, nos impede de enxergar a tênue linha que divide o certo do errado dentro de uma guerra. 

“O pássaro, o broche, a música, as amoras, o relógio, a bolacha, o vestido que irrompe em chamas…eu sou o tordo. Aquele que sobreviveu apesar dos planos da Capital. O símbolo da rebelião” (GIF: Reprodução)

Esse mesmo fogo desde o começo queima dentro de Katniss também, mas todas as atrocidades pelas quais ela foi forçada a passar dentro da Arena tornam sua caminhada sob a linha entre certo e errado ainda mais estreita. Ambos os meninos que compõem o romance da saga são representações do equilíbrio que a Garota em Chamas precisava encontrar em prol de sua própria sanidade. No entanto, também é uma mensagem para os leitores de que devemos lutar pelo que acreditamos sem perder de vista quem somos.  

Dentro da história de Katniss Everdeen podemos encontrar um mundo de reflexões e ensinamentos. Numa uma saga capaz de ensinar, não a sobreviver em uma Arena, mas a viver em uma sociedade mascarada e desigual. Suzanne Collins criou uma narrativa que ensina o público jovem os assuntos que muitos adultos não são capazes de entender. Com isso, ela moldou uma geração inteira de Tordos que, mesmo 10 anos após o lançamento de Jogos Vorazes, continuam a cantar por liberdade e justiça.

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