Raquel Dutra
Quem nunca assistiu uma amiga incrível se metendo num relacionamento medíocre que flerta com características abusivas? E se essa amiga fosse filha de uma das figuras mais relevantes dos últimos séculos? Pois bem, nesse cenário primeiramente comum e segundamente impensável está a vida de Eleanor Marx, que ao mesmo tempo em que continuava o legado de seu pai, também era parte de uma relação problemática e desproporcional a toda potência revolucionária que ela era. Para ressaltar essas inconstâncias da vida da caçula de Karl Marx e humanizar sua pessoa com doses de elementos da cultura pop é que se constrói Miss Marx, drama biográfico que vem direto das principais premiações do Festival de Veneza para a 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Já numa metáfora que revela a dificuldade de Eleanor (Romola Garai) em construir seu próprio caminho longe da sombra dos homens presentes na sua vida, o filme se inicia no mesmo ano em que se finda a vida de Karl Marx. Em 1883, a jovem, na época com 28 anos, conduz o velório do pai, e mesmo com o coração partido pela perda discursa com firmeza sobre a vida, obra e relevância política e social de Karl Marx para uma maioria de homens e figuras importantes do partido que ele era membro. Prendendo a atenção de todos, Eleanor se transforma em uma aposta de liderança para os movimentos que Karl deixou em estado de efervescência. Logo, a jovem aceita seu destino e assume a frente dos movimentos pelas causas que o pai dedicou toda a sua vida: a luta de classes e os direito dos trabalhadores. Enquanto isso, ela também traça sua própria história ao acrescentar a igualdade de gênero (sendo uma das primeiras autoras a interseccionar feminismo e socialismo) e o fim do trabalho infantil em suas principais reivindicações.
Tamanha segurança de Eleanor atrai também a atenção do dramaturgo Edward Aveling (Patrick Kennedy), que logo captura a jovem em seus encantos. A partir disso, o roteiro e direção de Susanna Nicchiarelli terminam de dar as cartas do filme com um desenvolvimento rápido do relacionamento, que acontece enquanto Eleanor conhece fábricas do mundo todo para ouvir as queixas e necessidades dos trabalhadores. Aos poucos, ela vai se metendo em problemas com as lideranças do partido que a financia por causa da companhia inútil e cara do parceiro nas viagens. Outras pessoas próximas a Eleanor também a alertam sobre o caráter duvidoso de seu esposo. Ela, mesmo assim, permanece ali, e Miss Marx segue, até o final, construindo um arco clássico de relacionamento abusivo.
Nessa dualidade conflitante de vida pessoal e profissional/pública, Romola Garai constrói impecavelmente a segurança relutante de Eleanor Marx. Sempre com olhos atentos e peito aberto ao mundo, a personagem é disposta e solícita, mas quando dentro de casa, assume uma submissão incoerente e, de início, inconsciente diante do marido e de suas irresponsabilidades e infantilidades. Edward, por sua vez, conserva um cinismo irritante e soberbo, que carrega uma postura curvada e diminuída quando divide presença com Eleanor. A partir disso, os atores constroem uma dinâmica para o casal que é interessantíssima de observar: em cenários caseiros, Patrick mantém a pequenez do marido de Eleanor enquanto Garai a reduz até chegar à altura dele. Assim, os dois se transformam em crianças. Ele querendo chamar atenção, e Eleanor sem pulso para recusar a armadilha.
Com uma trilha punk-rock sempre entoada por uma mulher nos momentos de clímax, o filme lembra comédias românticas e filmes adolescentes dos anos 2000. Em uma cena em especial, Miss Marx coloca a protagonista para dançar efusivamente a música, quase como uma libertação emocional de toda pressão que Eleanor carrega. Essa sensação também é transmitida em alguns momentos em que o filme quebra sua 4ª parede, quando Eleanor, em meio a multidões, fala mecanicamente para a câmera como se ensaiasse uma fala a partir da leitura que faz dos registros do pai, com medo de cometer algum deslize.
E falando nele, Karl Marx (Philip Gröning) tem breves aparições no filme, que se dão através de flashbacks carinhosos da infância de Eleanor. Em um deles, a família está participando de um jogo liderado pela jovem em que cada um deve dizer sua frase favorita. O pai escolhe citar o poeta romano Terêncio e afirma que “Nada do que é humano me é estranho”. Colocando-o numa posição quase de vidente do futuro conflitante da filha, Miss Marx entrega com sutileza que sua intenção não é julgar a vida pessoal de Eleanor, mas mostrar que os efeitos do patriarcalismo se desenvolvem sobre todas as mulheres, sem exceção.
Concentrando-se mais em como a personagem se sentia do que em pontuar seus feitos e sua importância política e social, o filme não se garante completamente enquanto biografia. Tendo isso em vista, junto de suas construções que fogem do convencional, é difícil mensurar os efeitos de Miss Marx. Um cuidado que deve existir é não compreendê-lo justamente de uma forma que toda a história e relevância de Eleanor sejam apagados frente ao seu relacionamento problemático. A partir disso, existe uma humanização da pessoa histórica que ela foi, que também deve ser feita longe de qualquer julgamento. Por fim, podemos tirar um alerta: seja aos olhos da própria sociedade que condena mais a mulher-alvo do que o abusador ou dentro da nossa própria mente, nossa vida e genialidade pode ser minada por homens medíocres.