Raquel Dutra
Uma verdade doída é experienciada em momentos de dor e luto: quando uma tragédia acontece, o mundo não para. A vida tem que continuar, o trabalho não espera, as responsabilidades e compromissos até podem ser momentaneamente adiadas, mas o buraco no peito é permanente e hora ou outra ele virá à tona. Aí, não tem muito o que fazer a não ser ceder ao choro no final do dia enquanto você só tenta não desabar no transporte público antes de chegar em casa. Mas Minha Irmã (Schwesterlein), um dos dramas familiares exibidos na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, usa seu cenário privilegiado para subverter essa experiência quase universal. Colocando todas as outras situações em segundo plano, o filme se debruça unicamente sobre a relação de dois irmãos abalados por um câncer, fisica, emocional e psicologicamente, direta ou indiretamente, cada um à sua maneira.
Lisa (Nina Hoss) e Sven (Lars Eidinger) são gêmeos berlinenses nascidos e criados no teatro. Ela é uma dramaturga que já viveu o auge de sua carreira e agora trabalha como professora num internato de alto nível na Suíça, onde seu marido Martin (Jens Albinus) é diretor. Dois minutos antes dela a mãe Kathy (Marthe Keller) deu à luz a Sven, o sucesso dos teatros de Berlim que atravessa uma grave leucemia. A relação profunda deles é ligada com os palcos: além do falecido pai ser uma figura importante no teatro político da cidade, uma das peças de maior sucesso de Lisa foi também o pontapé inicial da carreira de Sven, que empregou toda sua genialidade na vida de um dos personagens escritos pela irmã. Ela sonha em retornar ao cenário artístico de Berlim, onde o irmão ainda brilha, mas têm o desejo adiado pela vida confortável que tem ao lado de seus filhos e marido na cidade suíça.
Depois de passar por um transplante, Sven está debilitado como nunca. A mãe, em Berlim, diz não suportar vê-lo naquela situação e não tem o mínimo de preparo ou estabilidade emocional para atender os cuidados que o filho precisa, então Lisa leva o irmão a contragosto para sua casa. Lá, o roteiro e direção de Stéphanie Chuat e Véronique Reymonda começam a mostrar as consequências da decisão de Lisa de colocar o irmão acima de todas as outras coisas, que recaem tanto na vida pessoal da personagem, quanto na condução do filme. A dramaturga tenta conter rachaduras no casamento, encara muito perto a relação difícil que tem com a mãe e esbarra em seus sonhos frustrados, mas nenhum dos aspectos é tema pro filme. Todo o tempo da vida e de tela dela são dedicados a sua relação com o irmão, e o máximo que Minha Irmã permite para que Nina Hoss trabalhe a individualidade de sua personagem é uma exaustiva e constante transpiração de tristeza, desespero, preocupação e frustração.
Com Sven as coisas são mais fáceis. Sem tirar o mérito de Lars Eidinger, que não veste nenhum clichê melodramático, a condição de sua personagem é propícia para a nossa empatia. Irradiando uma energia caótica, divertida e teimosa é que Eidinger expressa a tristeza do ator em se ver longe do que ama e sem perspectiva de melhora. Como alguém que recusa os diagnósticos ao mesmo tempo em que se sente diminuído pela seriedade deles, Sven vive loucamente o quanto sua energia e seu corpo prejudicado pelos tratamentos invasivos permitem. A intimidade dele nem precisa ser descascada porque a irmã já conduz tudo. Relacionamentos, trabalho, a própria doença… a dimensão física das dores de Sven são únicas dele, mas todas outras são divididas com Lisa e ao mesmo tempo são sentidas em dobro, já que ela também toma todas elas.
Esse sufocamento incômodo das angústias de Lisa soa intencional. Talvez o objetivo das diretoras com a protagonista seja justamente escancarar a situação de mulheres que atendem às necessidades de todos ao redor mas que nunca têm as suas atendidas, nem por si mesmas. Seja adiando seus sonhos, seja com o marido que toma decisões importantíssimas que dizem respeito à família sem considerar sua opinião, Lisa é a personagem principal mas também é a coadjuvante das circunstâncias e de seu irmão (idolatrado pela mãe que, em contrapartida, não mede as palavras na hora de criticar o trabalho da filha). Mais uma vez, a dinâmica da personagem de Hoss ressoa tanto dentro da trama quanto na estrutura do filme. Ela está em tudo, mas verdadeiramente não está em nada.
Quando Sven tem outra piora significativa, a irmã, pensando em seu bem-estar, decide levá-lo de volta a Berlim e mesmo criando mais conflitos em seu casamento, permanece na cidade com ele. Ali, inicia-se um desenvolvimento em sua individualidade, quando ela começa a escrever uma peça para o irmão, já em situação terminal. No cenário quente e aconchegante da capital alemã capturada pela fotografia de Filip Zumbrunn, as emoções à flor da pele de Lisa desencadeiam um processo criativo, diferente das sensações que a frieza ofuscante dos alpes suíços despertavam nela (e em nós).
O fim do filme é, na verdade, um recomeço para Lisa, que enxergou a fragilidade da vida de perto, mas ao mesmo tempo, também tomou conhecimento de seu valor como ninguém mais ali seria capaz de compreender. Através dela, Minha Irmã relembra que às vezes nem todos os sacrifícios possíveis são suficientes, e isso não quer dizer que eles sejam em vão.
Em meio a um cenário privilegiado, referências cruas à Shakespeare, irmãos Grimm, Bertold Brecht e Chopin (características bem do jeitinho do Oscar) e personagens sem aprofundamento, é difícil se relacionar com o filme como um todo. Mas Lisa, com todo o cuidado e amor incondicional que tem pelo irmão em meio a um caos emocional, é capaz de retratar realmente o que todos nós queremos dizer e como queremos agir quando em situações como a dela, especialmente em um ano tão impiedoso quanto 2020. Naquele momento, o mundo ao redor simplesmente não importa. Se exteriormente ele não puder parar, interiormente, nós paramos. E lidemos com as consequências disso.