Ana Júlia Trevisan
A perda de memória a curto prazo, problemas cognitivos, esquecimento do local onde guardou objetos de valor, repetição da mesma frase ou pergunta, esquecer o nome de parentes, esses são alguns dos sintomas característicos das fases iniciais do mal de Alzheimer, doença que foi respeitosamente retratada em Meu Pai (The Father). Adaptação da premiada peça de teatro O Pai, o filme tem a direção brilhante de seu dramaturgo Florian Zeller, considerado pelo The Times: “o mais emocionante do nosso tempo.”
A trama se inicia com a sutileza de uma conversa entre pai e filha. Com a atuação de dois gênios, Anthony Hopkins e Olivia Colman entregam interpretações na medida certa e sem esforços. Ela, com suas expressões faciais acolhedoras, por vezes é o respiro que precisamos durante a agonia de acompanhar uma doença degenerativa. Já Hopkins, com uma das carreiras mais memoráveis do Cinema no papel do serial killer Hannibal Lecter, em O Silêncio dos Inocentes, entrega o trabalho da vida. Com naturalidade e destreza indescritível de performance, ele parece ser o único a não estar atuando no filme, cada segundo de cena exala verdade do ator em seu personagem homônimo.
É perceptível para quem convive com um paciente de Alzheimer que a pessoa cria uma própria realidade em sua mente, um mundo paralelo que por vezes pode servir de fuga. Em Meu Pai, estamos dentro da cabeça de Anthony, transitando sem GPS entre dois mundos. Essa transição nos ajuda a entender o grau da demência e se une à sutileza da troca de cenas que de início coloca em dúvida quem realmente está interpretando Anne, a filha, tornando a experiência de estar no consciente do protagonista ainda mais profunda. A trilha sonora vem pra reforçar tudo que foi dito, com música clássica tocando, só ouvimos quando Anthony está com o aparelho de rádio ligado.
O passar das cenas constrói um jogo que nos faz sentir o gosto amargo da mente confusa e o medo da solidão. Os sentimentos do roteiro também são impressos na troca de cenários. Os cômodos da casa são como partes de um labirinto da memória, que em cada ambiente temos cores e objetos casando com o enredo e com as lembranças momentâneas de Anthony. O centro desse labirinto é o corredor que conecta as salas, como se cada vez que ele aparecesse, um novo dia começasse. As repetições e as cenas em looping confirmam que estamos na cabeça do personagem principal.
Há, também, detalhes que passam despercebidos em produções dessa temática, e que se não fossem encaixados no roteiro talvez nem fizessem falta ou deixasse um furo, mas a inserção faz diferença no acabamento e mostra o trabalho cuidadoso dos roteiristas e da direção de cena. No caso de The Father é o uso de relógio. Parte das pessoas diagnosticadas com Alzheimer se apegam a objetos para garantir o próprio conforto nessa viagem ao novo mundo criado, o uso do relógio por Anthony, além de ser a cereja do bolo, deixa traços temporais na história que não conta com uma linearidade por causa da demência que já deixou pra trás a noção de tempo.
A direção de Florian Zeller é impecável e inovadora, sabendo escolher muito bem seu cast e colocando o telespectador no íntimo de seu protagonista. A transição da peça de teatro para o cinema é feita com maestria, encaixando a trama nos padrões da Sétima Arte. Não é atoa que Meu Pai é o grande nome para ganhar o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, a mesma categoria que lhe garantiu o BAFTA. The Father também está na corrida para a estatueta de Melhor Filme.
Apesar de todo tempo de tela e a importância de Olivia Colman no enredo, que consegue se destacar equilibrando as forças de atuação, é inegável que apenas Anthony Hopkins é protagonista, o olhar vazio predomina o filme que não existiria sem ele. Vencedor do BAFTA de Melhor Ator, ele é um dos favoritos do tapete vermelho. Olivia, que serve de fermento nesta receita, engrandecendo ainda mais a produção, também aparece na lista de indicadas, concorrendo a Melhor Atriz Coadjuvante, entretanto a jornada da atriz nesse papel até aqui, não deixa tantas esperanças.
Além das já citadas, Meu Pai também, merecidamente, deixa o nome em Montagem e Design de Produção, somando assim 6 indicações ao prêmio mais importante do Cinema. O filme que não vem sendo vitorioso nos termômetros do Oscar, tem suas chances de sair premiado nas mãos do roteiro e do Anthony Hopkins, de 83 anos, o ator mais velho a concorrer ao prêmio principal, que pode ser o segundo da filmografia do veterano.
Meu Pai não é o único concorrente à estatueta que tem seu protagonista passando pela demência, o que colabora ainda mais para seu destaque. O tempo em que o filme acontece e o Alzheimer avança é ponto chave para identificação familiar. Não tem afobação, a doença não consome todo o ser em poucos minutos, a história acontece de maneira orgânica, com confusões diárias mas de avanço lento, sem apelar para a condição ou forçar o desenvolvimento dela. The Father se torna grandioso em seus detalhes, seus atores certos escolhidos pelo roteirista e diretor certo.
Conviver com um paciente de Alzheimer é um exercício diário de paciência. O retrato no filme está nos homens que passam por ele sendo companheiros da filha. A maneira mais fácil de lidar com os momentos de confusão era ligar para Anne e não ajudar Anthony. Explicando assim, a sobrecarga da filha, que sempre procura o melhor para zelar por aquele pai.
Assim, o filme consegue fazer um ótimo proveito de seus personagens secundários. Representando o genro sempre incomodado, um ignorante, tratando o doente como um peso na vida, duvidando do mal e jogando isso na cara dele. Nesse momento a direção de cena se mostra de qualidade unânime, realizando a troca de personagens de maneira tão exata que consegue surpreender o telespectador tanto quanto espanta o Anthony, que tem em seu inconsciente a sensação de ser um estorvo.
Todas as dores vividas pelas personagens transpassam com maestria os momentos mais difíceis pra quem sente na pele o Alzheimer: os momentos de lucidez. É nesse instante que o distúrbio e a realidade se confundem, onde a pessoa entende a doença e entende que está doente. A impotência do momento, o esquecimento sobre coisas que parecem óbvias pra quem está ao lado e dançar conforme a música, fingindo que se lembra, se perturbar com uma memória irreal e essa lembrança entrar em repetição no cérebro do paciente quando a lucidez termina.
Meu Pai é um filme complexo e completo. Ele caminha do lapso de tarefas do dia a dia até o esquecimento de uma tragédia. Mostra que não há momento certo para as lembranças voarem. As possíveis cuidadoras que passam na vida de Anthony causam repúdio no idoso que não aceita ajuda para provar que pode se manter no controle, a cena do consultório médico é um choque de quão incompreensível o Alzheimer pode ser. O desfecho do filme reverbera por dias na mente de quem o assiste, e suas cenas são atentas a todos os detalhes que servem para amarrar a história.
As memórias escorrendo pelas mãos e não conseguir fazer nada em relação. Medo, insegurança, pavor, anseio de estar no lar descrevem Meu Pai, que apoia seu enredo na construção do necessário vínculo pai e filha de cuidado. Envolvente e sentimental, a produção nos deixa em estado de êxtase, aflição e empatia se entrelaçam gerando uma dor que se remoe por ser real, pelo esquecimento machucar todos envolvidos. The Father é o mais respeitoso e fiel retrato do Alzheimer, e uma das melhores experiências cinematográficas da temporada de premiações. É essencial ficar de olhos bem abertos para os próximos trabalhos de Florian Zeller.