João Batista Signorelli
Um cineasta chinês lidando com a solidão durante a quarentena, uma sucessão surreal de imagens vindas do inconsciente, uma visita à ópera de Paris na década de 50, e por fim uma garota curda proibida de cantar em público podem não ter muito em comum, mas todos estão presentes em Masters in Short, a seleção de curtas da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, exibidos como Apresentação Especial. Os 5 curtas escolhidos podem de início aparentarem não ter nada de comum, mas ao comparar o modo como cada um retrata a sua realidade diegética, relações interessantes começam a despontar.
Os curtas podem ser organizados de modo a formar uma escala gradativa que vai do completo surrealismo até a mais concreta realidade. Temos a partir de um dos extremos do espectro os dois curtas de Guy Maddin com os irmãos Evan e Galen Johnson em uma total fuga da realidade; uma singela situação encenada no curta de Jia Zhangke imaginada a partir da realidade de isolamento vivida hoje; uma viagem por imagens de arquivo reais montadas de maneira orquestrada no minidocumentário de Sergei Loznitsa; e por fim a mais honesta e crua realidade sem filtros de Jafar Panahi.
É curioso observar algumas semelhanças estéticas e temáticas entre as obras. Três deles são predominantemente em preto e branco, mas em todos há alguma incursão de cores, dando vida de maneira inesperada a universos monocromáticos, além de um quarto filme colorido que não se esquece de incluir o P&B em sua narrativa. Além disso, em todos a ideia de Arte ou de performance se manifesta de alguma maneira, seja em uma projeção solitária de um filme clássico, nas apresentações de um adivinhador em uma feira, na Arte que se mistura às vivências de um sonho, ou ainda em um canto proibido escondido atrás de cortinas.
Em A Visita, Jia Zhangke, que também marca presença na Mostra com seu longa documental Nadando até o Mar se Tornar Azul, interpreta a ele mesmo neste singelo retrato do novo cotidiano do seu isolamento social na China. Tratando com leveza e humor os novos hábitos sociais, ele busca pelo cômico das situações únicas ao momento que estamos vivendo.
Seja associando o efeito sonoro do gatilho de uma arma ao medidor de temperatura apontado para a cabeça, ou brincando com o desconforto de encostar em uma tela potencialmente contaminada, Jia conduz esse senso de humor para um desfecho agridoce. Nele, uma multidão, algo tão impensável para o momento presente é vista, mas apenas dentro da projeção de um filme assistido por dois personagens.
Estes contemplam aquelas imagens talvez com melancolia, ou talvez simplesmente com a admiração, e o desejo de escapismo de quem assiste a uma obra ficcional que retrata coisas impossíveis para a realidade que vivemos. Mesmo que essa realidade seja apenas temporária.
O filme reproduzido em seguida, O Adivinhador, parece querer levar ao pé da letra esse desejo de fugir da realidade. Contando a história de um homem que vive de apresentações em uma feira onde surpreende sua audiência com seus atos impressionantes de adivinhação. Ele tem a vida e carreira arruinados após ter seu espetáculo sabotado e, ainda por cima, se apaixonar por uma mulher que descobre ser sua irmã. A partir daí, ao invés de tentar recuperar o seu prestígio, ele passa a buscar um modo de provar a não-consanguinidade de sua irmã.
Se a trama soa absurda, ela não poderia se adequar melhor ao estilo visual único de Guy Maddin, conhecido por evocar em seus filmes a linguagem do cinema mudo, mas sem abandonar sua originalidade para isso. Se em outros filmes como O Artista (2011), a relação com essa linguagem clássica se limita a uma simples reprodução de estilo, Guy Maddin experimenta as inúmeras possibilidades que esse formato pode proporcionar, como se estivesse dando continuidade às vanguardas do Expressionismo e do Surrealismo que perderam espaço após a chegada do cinema falado. Cheio de estripulias visuais e ideias mirabolantes, o curta mergulha no universo surreal e caótico de um homem que antes era capaz de saber em quais dos disparos de uma arma haviam balas, e agora sequer tem o controle de sua própria vida.
Se cada curta da exibição carrega um grau de realidade específico, é curiosa a escolha de trazer dois filmes frutos da parceria de Guy Maddin com Evan e Galen Johnson, como se essa opção por duas obras mais oníricas causasse um desequilíbrio no conjunto dos curtas para essa tendência mais surrealista. Mas essa escolha torna-se facilmente justificável ao se imaginar diante da difícil escolha de selecionar apenas um destes dois projetos. E se O Adivinhador ainda trazia consigo um arco dramático e uma estrutura narrativa em meio às experimentações, Os Caçadores de Coelhos é um sonho em sua natureza mais distante de qualquer fórmula ou forma.
Produzido em homenagem ao centenário do cineasta Federico Fellini, The Rabbit Hunters é uma viagem pelos sonhos estrelada por Isabella Rossellini. Filha de outro importante diretor italiano, Roberto Rossellini, ela interpreta o que parece ser uma versão do próprio Fellini em uma projeção do inconsciente. O filme não apenas evoca sequências clássicas do diretor, como a icônica sequência de abertura de sua obra-prima 8½, como também ganha vida própria ao criar uma atmosfera de sonho cuja fidelidade ao modo como os sonhos operam (pelo menos os meus) é tanta, que deixaria David Lynch com inveja. Entrecruzando-se por camadas de sonho desconexas, Os Caçadores de Coelhos constrói um mundo onde uma projeção de um filme se torna a nova realidade, os cenários se diluem uns nos outros, e o questionamento em relação a “o que é real?” se torna irrelevante.
Saindo dos sonhos e saltando para a realidade, Uma Noite na Ópera é compilação de imagens de arquivos, organizadas pelo ucraniano Sergei Loznitsa da ópera de Paris nas décadas de 50 e 60. Ao som de uma trilha sonora majestosa, o curta apresenta a alta sociedade parisiense da época, com direito a aparições de celebridades como Brigitte Bardot e até mesmo a realeza britânica.
O maior mérito do documentário é sua montagem que, ao unir cenas gravadas em anos diferentes e organizá-las de acordo com o espaço e o tempo, produz a sensação de estarmos realmente acompanhando uma única noite na ópera, desde a chegada dos carros, até a saída pelas escadarias após a apresentação. Porém, seus méritos artísticos não passam muito daí, e seus longos 20 minutos saturam rapidamente, flertando com a repetição e o tédio. Ainda assim a obra funciona como um registro histórico eficiente, ressignificando imagens pelo modo como as agrupa e organiza, imagens estas que separadamente não teriam apelo ou propósito algum para serem assistidas além da pura curiosidade de poucos.
Enquanto que em Uma Noite na Ópera o tempo e realidade são manipulados e distorcidos, Escondida não poderia ter seguido um caminho mais diferente. Talvez seja devido ao fato de este ter sido o meu primeiro contato com o cinema de Jafar Panahi, mas de qualquer maneira me senti tão surpreendido a ponto de repensar tudo o que eu antes entendia por documentário. Se no filme visto anteriormente a música, a seleção e a organização das imagens construía uma espécie de ilusão escapista e atraente, em Escondida os eventos documentados sofrem pouca ou nenhuma alteração. As ações desenrolam-se praticamente em tempo real, em longos planos, e não há trilha sonora ou qualquer espécie de artifício para induzir emoções ou sensações além dos próprios registros, eles falam por si.
A proposta é revelada aos poucos: Panahi e sua filha filmam a eles mesmos acompanhados de uma amiga, enquanto vão a uma aldeia na tentativa de convencer uma mãe a permitir sua filha, proibida de cantar em público, a performar em um grupo de teatro formado apenas por mulheres. Gravado com apenas dois celulares, o filme nunca se esconde de sua própria condição de simplicidade, e justamente essa condição que colabora para tornar tudo tão crível e marcante. É quase como se tivéssemos acesso aos arquivos pessoais do diretor, e no meio disso fossem encontrados alguns registros improvisados de um momento singular de sua vida.
Com um desfecho que emociona por sua beleza e unicidade, Escondida encerra a sessão de Masters in Short com aquilo do qual alguns dos curtas exibidos tentaram escapar, e outros esculpir à sua própria maneira. Aquilo que o cinema costuma tentar maquiar, mas que após o rolar dos créditos predomina sobre a Arte; que as luzes, os efeitos e as artimanhas podem até tentar esconder, mas que sempre prevalecerá por detrás das cortinas e das telas. Aquilo que Arte busca sempre recriar, mas que Jafar Panahi insiste em manter, e que ao final se torna inescapável a qualquer tentativa de ilusão: o mundo real.