Nathália Mendes
Limpe bem seus ouvidos para assistir o drama português Listen exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Nele, a surdez nada tem a ver com a falta de audição, mas com a racional ignorância daqueles que ouvem muito bem. No longa escrito e dirigido por Ana Rocha Sousa, um casal de imigrantes portugueses tenta criar três filhos, sendo a do meio uma menina surda, e sobrevivendo de subempregos em uma dura Londres, até que o Serviço Social britânico tira as crianças de casa. É por esse duro retrato familiar que o longa pauta a silenciosa adoção forçada na Inglaterra.
Listen estreou no 77º Festival de Veneza em 2020 pela seção Horizontes com a sua coragem em narrar um assunto real em 3 línguas diferentes. No entanto, mesmo que o trabalho de Ana Rocha tenha sido recompensado com o grande prêmio de Leão do Futuro e o Prêmio Especial do Júri, seu filme foi vetado para concorrer ao Oscar de Filme Internacional em 2021 por não ter mais da metade de diálogo em idiomas diferentes do inglês. Sem surpresas, dentro e fora do Cinema a língua de sinais não é bem-vinda, mesmo com uma personagem e sua atriz sendo surdas – e muito bem premiadas.
O que você faria se fosse um imigrante, morando no subúrbio de outro país e o Serviço Social arrebentasse sua porta e levasse seus filhos sob a alegação de que você os machuca fisicamente? Essa é a situação que o casal Bela (Lúcia Moniz) e Jota (Ruben Garcia) se encontram. Ambos haviam recorrido anteriormente ao Estado britânico como a saída para seus problemas financeiros. Mas eles jamais imaginariam que teriam seus filhos arrancados de casa e colocados à força no sistema de adoção sob a alegação de violência.
Ainda que toda a trama seja extremamente delicada e real ao que acontece na Inglaterra, a montagem fixa demais e o apelo emocional de um público específico são fatores que minam um pedaço do sucesso de Listen. E isso é tão verídico que, como parte do roteiro, há uma quantidade enorme de vezes em que os personagens circundam o casal dizendo que “os entendem”. Não. Ninguém os entende. Todos somos filhos, mas nem todos temos filhos, e por mais que sejamos capazes de sentir empatia, a dor que Bela e Jota mostram – com uma bela atuação de seus atores – é o cerne da sensibilidade do longa.
Além de pautar essa realidade assustadora, a diretora de Listen criou uma construção essencial através da surdez de Lu (Maisie Sly) para pautar a ignorância da sociedade. Já dentro do sistema de adoção, ninguém se comunicava com Lu, e durante uma das visitas que o casal faz aos filhos, o longa desenhou – em uma de suas melhores e mais nauseantes cenas – o desprezo pela única forma que a menina possuía em se comunicar com o mundo: a linguagem de sinais. No trecho em questão, o agente que supervisionava a família grita a plenos pulmões contra suas falas em português ou em sinais. A alegação era de que poderiam ser mensagens secretas para as crianças, mas o incômodo do homem se assemelhava à repugnância.
Mais um paralelo interessante foi criado para mostrar a comoção do outro diante de uma situação tão reprovável quanto tirar crianças à força de suas casas. Isso foi feito através de 3 personagens do Serviço Social: um agente completamente ordinário que reprova a família, uma outra em cima do muro entre seguir seu trabalho e sentir dó de Bela, e uma ex-agente e advogada que ajuda a família secretamente. Assim, o longa mostra como as pessoas que estão inseridas em sistemas desumanos possuem ouvidos que captam tudo, mas nem todos optam por escutar a dor de uma família destroçada.
“Ela tem culpa, ela conhece o sistema, ela sabe como funciona. Todo mundo sabe” foi a última fala de Bela, uma mãe que chega exausta ao final do filme por lutar tanto. Ela consegue Lu de volta, pois ninguém aceitou adotá-la pela surdez, e o filho mais velho Diego (James Felner) que havia fugido, mas perde sua bebê de 1 ano para o sistema de adoção britânico, que legalmente não desfaz adoções – ainda mais aquelas que foram, na verdade, crianças roubadas pelo próprio Estado. E trajando essa dura consciência, Listen depositou toda sua bela simplicidade na 45ª Mostra de São Paulo.
A força que essa família exibiu ao lutar pelo que tinham de mais valioso expôs a gravidade de múltiplas realidades sufocantes, da adoção forçada ao isolamento de quem se comunica pelas mãos. Através de cenas muito particulares e com imagens detalhistas de seus personagens, nos aproximamos do sofrimento advindo de uma situação tão específica, alarmante e silenciosa. Como dito por Ana Rocha Sousa, “A vida não é feita de palavras”, e nem as mais fortes gritadas com todo o poderio das cordas vocais podem mudar o mundo. Mas talvez, quem sabe, os sinais.