Mariana Nicastro e Nathan Sampaio
Há cinco anos, nos cinemas, Bill, Beverly, Ben, Eddie, Richie, Stanley e Mike deram as mãos em círculo e selaram a promessa de que voltariam a Derry se Pennywise também retornasse. O tal The Losers Club, Clube dos Perdedores ou Clube dos Otários ensinou valores como amizade, lealdade e coragem, e It – A Coisa marcou a cultura pop com um filme que equilibra medo e encanto com maestria.
Baseado no livro de Horror do rei do gênero literário, Stephen King, autor de O Iluminado, Carrie, O Cemitério e outras obras famosíssimas que já tiveram suas adaptações para os cinemas, em setembro de 2017 foi o ano de It – A Coisa ganhar um novo longa, distribuído pela Warner Bros. Pictures. ‘Novo’, já que a obra foi adaptada algumas vezes no passado, como na série de televisão It (1990), protagonizada pelo palhaço assassino de Tim Curry.
Dividindo a história do livro em dois filmes, o longa-metragem estadunidense difere-se da adaptação noventista ao representar apenas a parcela da trama que se passa na juventude dos personagens. It – A Coisa se inicia com Bill Denbrough (Jaeden Martell) buscando Georgie, o irmão desaparecido, junto de seus amigos, enquanto um mal existente há séculos na cidadezinha de Derry, no Maine, retorna e assombra a região amaldiçoada.
A direção de Andy Muschietti, responsável pelos longas Mama (2013) e o futuro – e incerto – The Flash, é habilidosa e fornece toneladas de nostalgia misturadas a um Terror sobrenatural. Isso porque It é eficaz ao desenvolver excepcionalmente seus protagonistas carismáticos, pertencentes ao final dos anos oitenta, em um misto de referências, parcerias e amores restritos à fase da pré-adolescência. Em um momento em que tudo é infinito, os amigos são eternos e há energia, pureza e criatividade suficientes para derrotar os mais tenebrosos monstros.
Desses monstros, Derry carregava um dos piores, que sentia fome a cada vinte e sete anos e saía para caçar. Se alimentando de medo e carne humana, a Coisa é uma das criaturas mais assustadoras e interessantes escritas por King, maravilhosamente representada na Sétima Arte. Rondando principalmente crianças, presas mais fáceis, a entidade transmorfa cria cenários visíveis apenas para suas vítimas, transformados as naquilo que elas temem. Se os jovens têm medo de palhaços, a Coisa torna-se o mais macabro deles.
E é nesse contexto de ataques e desaparecimentos de crianças que o Clube dos Otários se reúne para compartilhar experiências e decide investigar e impedir que mais ‘Georgies’ desapareçam, e mais famílias fiquem desamparadas. O filme embarca em uma aventura bizarra, com os membros do grupo sendo pessoalmente atacados e obrigados a enfrentarem seus medos enquanto lutam contra problemas pessoais e encontram refúgio uns nos outros.
Com uma fórmula parcialmente retirada do livro, e parcialmente adequada para um filme de horror sobrenatural mais tradicional, o roteiro de Cary Fukunaga, Gary Dauberman e Chase Palmer segue uma sequência de ataques viscerais por Derry e encontros das crianças com a Coisa, encarnada no palhaço dançarino Pennywise (Bill Skarsgård). Se o grupo de atores mirins é a alma do filme, Skarsgård é o coração, que bombeia energia para cada cena montada pela direção, com sua atuação minuciosa e apavorante em cada detalhe, elogiada até mesmo pelo próprio Stephen King.
Seja em seus olhares alaranjados intensos e famintos, em seu modo de falar misterioso e excêntrico ou em suas expressões horripilantes que sobrevivem às camadas pesadas de maquiagem, a composição do vilão criada por Skarsgård é impressionante. A caracterização bizarra se destaca das versões anteriores da criatura, com mais traços monstruosos e deformados que as demais, reforçando a ideia de que Pennywise tem aspectos do que um dia foi um palhaço, mas está longe de ser algo próximo a um humano. E a violência e ferocidade da Coisa dão um toque gore à obra que, apesar de protagonizada por crianças, exige uma maturidade para ser assistida, evidenciada pelo plano sequência inicial, nada sutil.
Suas aparições são sempre marcantes, mesmo que a regra usada para assustar se torne batida ao longo de It: A Coisa, quando usada repetidas vezes. Em uma investigação à la Scooby-Doo, as crianças perseguem o sequestrador de Georgie por casas assombradas e esgotos, com uma coragem incitada pela união do grupo. Aproveitando-se da audácia infantil, Pennywise manipula a realidade de cada uma com seus truques para atraí-las até sua teia de aranha e fisgar suas presas.
Ainda que o método de ataque da Coisa siga uma ideia comum e termine – quase – sempre com os protagonistas escapando, os eventos são inventivos e envolventes. Muito disso se deve ao caráter sobrenatural do vilão, que faz cada aparição sua ser diferente da anterior. Somados à preocupação do público para com os membros do Clube dos Otários, decorrente de uma boa introdução e apresentação de cada um deles, e a atuação impecavelmente medonha de Skarsgård, as cenas são cativantes, angustiantes e movem o terror.
Para que o palhaço se tornasse icônico, não bastaria apenas a atuação, seria necessário também um visual marcante. Sarah Craig e Linda Dowds, responsáveis pela maquiagem do filme, fizeram um trabalho fenomenal ao construir a estética de Pennywise. Em seu design une-se o infantil com o macabro, tornando-o uma das figuras mais conhecidas do Horror.
O mistério sobre a natureza do vilão o torna mais assustador para o espectador, afinal não sabemos quando, onde e como ele pode atacar os protagonistas, deixando um clima de perigos constante no ar. Pennywise é uma incógnita para os protagonistas, e, consequentemente, para o público. Só com o caminhar da jornada vamos descobrindo pequenas pistas sobre suas intenções e origem. Mas Fukunaga, Dauberman e Palmer, de maneira assertiva, escolhem não contar tudo sobre a Coisa, deixando várias perguntas em nossa cabeça, que fazem o filme se prolongar durante dias na nossa mente.
Personagens atrativos como os de It são essenciais para uma história que se usa muito da empatia e nostalgia como carros-chefes. Cada um deles tem algo a oferecer que desencadeia a identificação da audiência. O protagonista Bill-gago é um líder gentil, que carrega a dor da perda do irmão mais novo e o fardo da vingança contra uma criatura aparentemente imbatível. Já Ben (Jeremy Ray Taylor) é um garoto doce e apaixonado, novato na escola e encantado com um grupo de amigos acolhedor e aventureiro.
Richie (Finn Wolfhard) é sarcástico, zombeteiro e proporciona grande parte do alívio cômico da obra ao lado do pequeno e hipocondríaco Eddie (Jack Dylan Grazer), tão cheio de inseguranças e medos quanto sua mãe o faz acreditar que é. Stanley (Wyatt Oleff) é a parcela mais cética e reclusa dos sete, o que lhe rende um destino sombrio no livro de King.
Mike (Chosen Jacobs) é corajoso, determinado e o único que criaria um laço eterno com o que viveriam ali. Por sua vez, Beverly Marsh (Sophia Lillis), com seus cabelos de fogo como brasas no inverno, é a única garota do grupo. Ousada, mas amorosa e afeiçoada por Bill, ela aproveita, no clube, a oportunidade de ter a liberdade e carinho que seu pai agressivo e abusivo impediu que ela tivesse na família.
Juntos, eles criam um laço forte o suficiente para desafiar a personificação da maldade e do medo e, além de funcionarem bem individualmente, unidos, o grupo tem uma essência e espírito próprio. Assim, eles são capazes de enfrentar não só a maldição sobrenatural de Derry, mas também a humana. Já que Stephen King adora criar em suas obras humanos tão perversos quanto monstros, como é o caso do bully psicopata Henry Bowers (Nicholas Hamilton), seus capangas ou Alvin Marsh (Stephen Bogaert). Seus atos são ainda intensificados diante da maldição da cidade, dominada pela Coisa. Ou, afinal, seria o mal sobrenatural intensificado pela crueldade humana local?
O fato é que Derry é rodeada pelos piores males da humanidade. Assassinatos, desaparecimentos e massacres fazem parte da história local há séculos, mas aqui, diferentemente do livro, funcionam mais como pistas ou referências para quem leu a obra original, como na relação do incêndio com a família de Mike e o racismo por eles enfrentado. De qualquer modo, os mistérios são descobertos pelas crianças ao longo da jornada e servem para mostrar que a cidade reflete tudo o que há de pior em Pennywise, ou o contrário.
Ao contar esses eventos, Muschietti faz da cidade não só uma ambientação perigosa, misteriosa e encantadora, mas cria um personagem vivo, que tem um passado e um presente sangrento. E assim como os protagonistas, Derry tem uma intensa ligação com Pennywise, e conforme o Clube dos Otários desvenda essa conexão, mais macabra se torna a visão que o público tem de ambos.
Isso deságua em um terceiro ato repleto de mistério, alguns sustos divertidos e um embate final impactante e condizente com a atmosfera desenvolvida pelos protagonistas, na qual a união lhes dá força e todos se descobrem mais valentes do que pensavam ser. Eles se vêem cara a cara com o que está mais próximo da real face da Coisa e dão um passo em direção a sua aniquilação – pelo menos pelos próximos vinte e sete anos.
Por sua vez, o espírito oitentista é visível em It através de sua fotografia. Chung-hoon Chung, fotógrafo de Oldboy (2003) e Noite Passada em Soho, evoca magistralmente os elementos da época com seus ângulos de câmera e a composição de cena. Além disso, suas técnicas de filmagem buscam pontos de vista que deixam Pennywise ainda mais misterioso e ameaçador.
Embora o longa seja a adaptação de apenas metade do livro, jamais vemos a escassez ou adições desnecessárias. O Clube dos Perdedores se desenvolve durante a jornada, a criatura tem alguns de seus mistérios revelados – apenas o suficiente para que ainda haja segredos suficientes ao seu redor – e a aventura jamais perde o ritmo e a tensão, com um roteiro fechado em si, mas que também deixa um gancho para a sequência já prevista. It é uma obra completa, a qual podemos finalizar sem a sensação de que faltou algo ou que tem elementos sem propósito em sua duração, um problema presente em sua sequência.
Retirando apenas o essencial da obra original e adaptando para uma trama dinâmica e aterrorizante, It – A Coisa se destaca como uma das melhores e mais completas adaptações de Stephen King. A produção traz o mistério e o medo de uma criatura medonha, juntamente com o desenvolvimento de um clube de protagonistas carismáticos em uma jornada intensa e cruel de amadurecimento e amizade. Mais do que uma história de terror, o longa nos conta como enfrentar os nossos próprios medos e traumas, ao mesmo tempo que reflete sobre a importância de termos o nosso próprio clube de amigos inseparáveis.