Aviso: esse texto contém imagens sensíveis de crianças em situação de desnutrição.
Vitória Lopes Gomez
É impossível assistir Hunger Ward sem desviar os olhos. O curta-metragem acompanha duas profissionais de saúde em clínicas de alimentação terapêutica no Iémen, onde lutam para salvar crianças da morte por desnutrição. Sem hesitar em filmar o sofrimento, o diretor dinamarquês Skye Fitzgerald usa da dolorida exposição das vítimas para denunciar a mais triste das consequências da guerra que assola o país: a fome, que, só em 2020, ameaçou a vida de cerca de 100 mil crianças.
Se o “cinema humanitário” de Fitzgerald, como ele mesmo descreve, não parece tão humano ao apontar câmeras para bebês debilitados e famílias recém-notificadas da perda, o relato de um sobrevivente justifica: “o mundo precisa ver o quanto as pessoas do Iêmen sofrem”. O próprio diretor, em uma declaração no site do projeto, revela a urgência da realidade e como filmá-la pode gerar a empatia necessária para estimular uma mudança. Nem mesmo cabe aqui destrinchar méritos ou defeitos da produção, quando esta atinge com sucesso seu objetivo de sensibilizar e conscientizar quanto a necessidade imediata de ação.
O formato documental do curta-metragem não se apoia em longas descrições ou em uma narração impessoal, mas aproxima a realidade ao construir uma espécie de diário de bordo da médica Aida Alsadeeq e da enfermeira Mekkia Mahdi, que atuam nas duas clínicas onde o filme toma lugar. Combinando as gravações nos centros de reabilitação e os depoimentos das profissionais a inserções de planos de escolas destruídas, edifícios em ruínas e até a filmagem de um ataque aéreo, Hunger Ward conecta causas e consequências e apresenta um relato em primeira mão do saldo da guerra às vítimas. As imagens por si só são fortes, difíceis de assistir sem um pause para digeri-las e o caráter documental só aumenta a indignação: o que vemos é a realidade de muitas crianças.
Apesar de servir como um relatório, escancarando a urgência de ação, o filme não se dá ao trabalho de discorrer sobre o conflito em si, seus motivos ou lados. Isso realmente importa quando crianças estão morrendo? Ainda, a realidade que afeta muitos é resultado de interesses maiores e a produção não se acovarda em lembrar o caráter essencialmente político dos acontecimentos. Ao final, para não tirar o peso das imagens que expõe, o curta brevemente contextualiza: a fome que acomete crianças é consequência de um bloqueio de alimentos e medicamentos imposto pela Arábia Saudita, que, por sua vez, recebe apoio bélico, estratégico e operacional direto dos Estados Unidos e de países da Europa.
Coincidentemente, um mês antes da produção ser oficialmente indicada, o presidente norte-americano Joe Biden não falhou em colocar seu país como Pacificador ao pedir o fim da guerra no Iémen, ao mesmo tempo que segue apoiando os árabes a garantirem a soberania local e, consequentemente, a continuidade do conflito. Não é possível extrair a política da realidade e Hunger Ward é o depoimento cru e bárbaro do resultado dessa guerra esquecida, que atinge e mata crianças que nada têm a ver com os interesses de países imperialistas.
Indicado como Melhor Documentário em Curta-Metragem, Hunger Ward foi nomeado na mesma categoria ao Critics Choice Documentary Awards, que abre a temporada de premiações. No entanto, isso ainda não diz muito: a maioria dos concorrentes também ostentam outras indicações, mais ou menos significativas quando se trata de um termômetro para o Oscar.
O diretor Skye Fitzgerald, que em fevereiro ganhou Melhor Diretor de Documentário em Curta-Metragem no Social Impact Media Awards com Hunger Ward, já é conhecido da Academia. Em 2019, o dinamarquês dirigiu Lifeboat, que documenta a travessia de refugiados líbios no Mediterrâneo e também foi indicado como Melhor Documentário em Curta. Há dois anos, os votantes mostraram que estão de olho no estilo de Fitzgerald e ele segue a mesma linha em 2021.
A disputa na categoria é acirrada pela imprevisibilidade. A Netflix, que prevaleceu em 2019 com Absorvendo o Tabu, também tem um forte competidor esse ano, com Uma Canção para Latasha. Independentemente das chances de vitória, o poder do cinema humanitário se mantém: o sofrimento das pessoas do Iémen é um pouco mais conhecido depois de Hunger Ward, ainda que isso não faça muito efeito para o país anfitrião do Oscar.