Isabella Siqueira
A partir de uma narrativa quase poética e única, Garota, Mulher, Outras já pode (e deve) ser considerado um clássico da literatura britânica. Sua autora, Bernardine Evaristo, traça com cuidado as histórias de 12 protagonistas diferentes, que são ligadas por um fio condutor que compreende todo o século XX no Reino Unido. Indo além da riqueza de referências culturais, políticas e sociais que a obra apresenta, é no âmbito sentimental que a trama floresce.
O livro vencedor do Booker Prize de 2019, e que consagrou Evaristo como a primeira e única mulher negra a ser contemplada com o prêmio, entrega uma envolvente trama sobre pluralidade. Nomes como Barack Obama e Roxane Gray já fizeram referência a obra, que contempla sob uma nova ótica assuntos como sexualidade, classe, racismo e opressão.
Lançado no Brasil em 2020, Garota, Mulher, Outras tem uma divisão marcada em 5 partes – as quatro primeiras focadas nas 12 protagonistas centrais e a quinta parte consistindo no último evento que relaciona todas as histórias – se descobre que cada relato é possivelmente mais interessante que o anterior. Assim, talvez, o único defeito da obra esteja no próprio leitor, que em muitos momentos espera algumas páginas a mais de cada história, uma continuação do envolvente retrato apresentado.
Ainda, a narrativa brilhante da autora não ajuda. O aspecto fluído, composto por versos livres, curtos, sem letras maiúsculas ou ponto final, dão um ar poético à obra, sendo difícil não recitar algumas passagens mais emotivas. Garota, Mulher, Outras possui uma sonoridade própria mesmo sem rimas, tornando memoráveis até as cenas mais incômodas, como as de tortura piscologica e abusos sexuais, sem a necessidade de descrições diretas. De início, é até difícil situar quando está acontecendo um diálogo ou não, dado que a autora navega entre os dois sem deixar claro, o que produz o tipo de livro que exige, muitas vezes, uma segunda leitura.
Também é perceptível em sua escrita, como ela interpreta a vivência, personalidade e classe social da personagem sem a necessidade de uma narrativa em primeira pessoa, por meio de expressões, sotaque estrangeiro e gírias. A exemplo da parte de Yazz, representada pelo tom moderno da jovem que vive no mundo das hashtags e de expressões como Squad, ao invés de grupo de amigas.
Ou, até, quando é possível diferenciar o discurso otimista de LaTisha, personagem que brinca até em momentos traumáticos, em comparação com a narrativa séria de Carole, que adquiriu aos poucos o tom formal do seu novo círculo social durante a faculdade, e acaba negando os costumes nigerianos da mãe, Bummi. Nota-se também o cuidado da autora (e da tradutora) em utilizar pronomes adequados ao escrever a narrativa da twitteira e influencer Morgan, que foi criade como menina, mas que se identifica com gênero neutro a alguns anos.
“Megan decidiu testar Elu e Delu, o mais importante pra mim é que eu sei como me sinto, e um dia o resto do mundo vai poder me alcançar, mesmo que seja uma revolução silenciosa e mais longa que minha vida, se é que vai acontecer.”
O estilo único da narrativa de Evaristo encaixa perfeitamente com as histórias contadas, a diversidade de experiências apresentadas casa com a semelhança entre todas as personagens. Se propondo a trazer 11 mulheres, em sua maioria negras, e uma pessoa não binárie, mesmo que separadas pela geração ou pelo espaço, é impossível negar que todas são ligadas pela independência.
Com idades variando entre a protagonista mais jovem, Yazz, de 19 anos, e a mais velha, Hattie, de 93 anos, cada personagem se recusa a ser subjugada pelo ambiente hostil em que vive, seja na Inglaterra, Nigéria e Barbados, sendo elas imigrantes ou filhas de imigrantes. A pluralidade de histórias forma uma conversa entre gerações, a trama traz aos poucos como a opressão, a imigração e a estrutura da sociedade ajudou a formar uma nova realidade, um novo Reino Unido, para cada uma delas.
Embora as temáticas abordadas deem a impressão de uma trama forte sobre militância social, a autora opta por não transformar cada protagonista em apenas uma voz de um discurso comum. Questões de raça, classe e sexualidade são levantadas no romance sem qualquer pretensão panfletária. Ainda com um humor refinado, Evaristo ironiza, mas sem desrespeitar, os grupos militantes, que hoje estão em tantas subdivisões que fica até difícil acompanhar.
“As feministas radicais queriam alojamentos só de mulheres, autogeridos por uma cooperativa
As feministas radicais lésbicas queriam alojamentos separados das feministas radicais não lésbicas, também autogeridos por uma cooperativa
As feministas radicais lésbicas e negras queriam a mesma coisa, mas que nenhum branquelo de qualquer gênero entrasse lá”
Ainda que aborde assuntos que não são novos para a literatura contemporânea, mas que são inovadores tendo em vista os anos de antiquados romances clássicos, Evaristo dá um passo além. Ousando levantar pautas ainda não muito exploradas até para os mais progressistas, como no capítulo sufocante de Dominique, que aborda desde o início um relacionamento abusivo e a violência entre um casal homoafetivo, tendo como pano de fundo uma curiosa comunidade de mulheres nos Estados Unidos.
Em diversos momentos, as personagens se questionam sobre suas atitudes e posicionamentos, o que é feminista o bastante ou o que não é – cada uma com apenas o espaço e tempo em que está inserida para guiar suas decisões. Indo de mulheres que desde jovens foram iniciadas em um contexto empoderado, até outras que viveram o conflito familiar gerado pela diferença de décadas, é muito insensível julgar as atitudes de cada protagonista, analisando Garota, Mulher, Outras sob uma ótica unificada do que é ser mulher.
Com o passar da obra, fica claro que o laço que relaciona cada conjunto de histórias é de amizade ou familiar, a autora dá ênfase em relacionamentos entre amigas e mães e filhas. O próximo relato tem origem no anterior, a perspectiva que precede a outra é questionada em razão da nova, e cada história encontra dois lados.
Apesar de mostrar experiências traumáticas e se concentrar em personagens cujas vidas não foram confortáveis, Bernardine Evaristo não se concentra no horror e na miséria. Muito pelo contrário, o que sua obra deixa é a singularidade de cada personagem, e como ela consegue com muita sutileza relacionar cada narrativa. O cuidado e respeito caracterizam Garota, Mulher, Outras, a oitava obra da escritora anglo-nigeriana, que se tornou um fenômeno editorial por sua coragem e sensibilidade extrema.