João Batista Signorelli
As memórias são fundamentais para a constituição da identidade humana. Se parte essencial de um indivíduo é construída a partir de suas experiências, o que acontece se ele perde o elo de sua mente com elas? Explorando as relações entre identidade e as lembranças, Fruto da Memória, coprodução entre a Grécia, Polônia e a Eslovênia exibida na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, apresenta uma pandemia onde qualquer um pode contrair uma amnésia repentina permanente, expondo a vulnerabilidade da identidade humana protegida pelas próprias recordações.
Trata-se do primeiro longa-metragem dirigido por Christos Nikou, que iniciou sua carreira como assistente de direção, trabalhando com outros diretores como Yorgos Lanthimos em Dente Canino, e até Richard Linklater em Antes da Meia-Noite. Rodando o mundo em festivais internacionais em 2020, Fruto da Memória foi exibido em Toronto e integrou a Mostra Horizontes do Festival de Veneza. Selecionado pela Grécia para representar o país no Oscar 2021 para Melhor Filme Internacional, o filme não alcançou a pré-lista da categoria, e finalmente chega ao Brasil estreando na Mostra.
Na história, um homem contrai a amnésia em um ônibus. Sem documento, e após dias de estadia no hospital sem que algum familiar vá procurá-lo, ele entra para um programa governamental de recuperação para não-identificados, que o ajuda a construir novas memórias. Sendo guiado a registrar suas vivências em fotografias, ele se aproxima de uma mulher que participa do mesmo programa, mas as vivências “forçadas” parecem não ser o suficiente para que o protagonista recupere uma plena reintegração à sociedade, levando-nos a questionar: é possível reescrever nossa identidade?
A fotografia de Bartosz Świniarski restringe o nosso campo de visão com a proporção 4:3 e a câmera impassivelmente estática, traduzindo para a imagem a ideia de que a ausência da memória pode limitar a nossa capacidade de enxergar e entender os espaços, e o mundo como um todo. Os tons acinzentados sugam a vida da imagem do mesmo modo que as lembranças do protagonista, e mesmo as eventuais cores intensas que surgem aqui e ali, aparecem chapadas, sem ter com o que contrastar e adquirir vivacidade.
Embora a trama pareça razoavelmente previsível até determinada parte do filme, é quando o protagonista é exposto a situações emocionais mais intensas que o roteiro assinado pelo diretor junto com Stavros Raptis começa a mostrar de fato ao que veio. O esforço em lembrar desdobra-se no desejo de esquecer. A memória é ora saborosa, ora dolorida, mas em qualquer um dos casos, inescapável. A maçã do título original Mila, e do inglês, Apples, é a grande chave: o saboroso e amargo fruto do conhecimento, que ao prová-lo, mesmo que doa, coloca o indivíduo de frente consigo mesmo, um alguém do qual é impossível fugir, quanto mais esquecer.