Nathalia Tetzner
Se a Indústria do Entretenimento ainda é um ambiente de extrema misoginia para as mulheres, imagine para uma jovem cantora em ascensão na era das boybands no final dos anos 90. Essa é a reflexão que o documentário Framing Britney Spears: A Vida de uma Estrela propõe sobre a carreira marcada por sucessos e turbulências da princesa do pop. Aqui narrada por fontes diversas como: amigos próximos, editores culturais, paparazzi, advogados e fãs. A proposta assinada pela diretora Samantha Stark tenta explicar para o público o movimento #FreeBritney (#LiberteABritney), inicialmente eclodido entre os seguidores da artista e que passou a ganhar notoriedade pela mídia.
Logo nos primeiros minutos, o tema é brevemente apresentado ao telespectador, que, então, é dirigido às origens de Britney Spears. Uma decisão inteligente do documentário, já que a temática abordada começou com a sua trajetória artística ainda criança. A casa de sua ex-assistente e amiga, decorada com os grandes feitos da cantora, é o cenário ideal para entender esse ícone da Música nascida na pequena cidade de McComb, no Mississippi, e que contava com o pouco dinheiro dos pais para fazer audições em Nova Iorque até integrar O Clube do Mickey.
Nesse momento em que o início da carreira é documentado, uma primeira evidência dos interesses do pai da artista vem à tona, pela menção de Jamie Spears como um alcoólatra apenas preocupado com o retorno financeiro do investimento na filha. Esse resultado tão esperado veio com a gravação do primeiro single de Britney: a música …Baby One More Time estourou nas paradas e virou a vida da jovem de cabeça para baixo.
A partir desse sucesso repentino, a direção faz um excelente uso de gravações e entrevistas nas quais Britney Spears é confrontada sobre sua sexualidade ser uma má influência para o público jovem, questionamentos que mesmo as boybands mais provocativas não sofriam. Essas filmagens também permitem ao público a visão de uma artista que está no comando de sua trajetória e possui uma forte conexão com seus fãs.
Em sequência, os impactos da misoginia nos relacionamentos da cantora são desenvolvidos com excelência, tendo início pelo primeiro grande escândalo midiático de Britney Spears: a acusação de traição feita por Justin Timberlake em Cry Me A River, responsável por desencadear a desaprovação do público pela artista. Seguido pela introdução do casamento conturbado com Kevin Federline, por meio do uso inteligente de falas que demonstram o desejo da jovem em formar uma família.
Graças ao assédio dos paparazzi durante o casamento e o período em que Britney estava grávida, os tabloides passaram a veicular uma imagem de péssima mãe da cantora, principalmente após ela ser flagrada com seu filho no colo enquanto dirigia. Assim, o documentário expõe mais um sinal da repercussão negativa de Jamie Spears, através da alegação feita pela artista de que seu pai fazia o mesmo quando ela era criança.
Dessa maneira, a obra revela o divórcio turbulento de Kevin Federline e Britney Spears como a principal razão do fatídico ano de 2007, quando a cantora apresentou sinais de transtornos mentais e estampou as capas de revistas com escândalos como, por exemplo, raspar a cabeça e destruir o carro de um paparazzo. No entanto, a direção de Samantha Stark esclarece que o estopim para Jamie pedir a tutela temporária da filha chegaria no ano seguinte, quando a artista se negou a devolver seus filhos depois de uma visita e foi levada para uma avaliação psicológica.
Daqui em diante, as fontes exploram o fato de que a saúde mental não era um tópico amplamente debatido naquela época. Assim como expõem a hipocrisia do público, que condena uma artista feminina pelos seus atos durante um momento de vulnerabilidade, mas não deixa de considerar os homens dessa Indústria do Entretenimento verdadeiros gênios por problemas pessoais. Um exemplo dessa contradição misógina é Justin Bieber, que, embora tenha figurado inúmeras polêmicas na mídia, não teve sua carreira como músico ameaçada na mesma intensidade que Britney, e muito menos foi submetido a uma tutela.
Desse modo, Framing Britney Spears: A Vida de uma Estrela também proporciona ao telespectador a possibilidade de analisar a tutela através de visões diferentes. Enquanto algumas fontes apontam o fato dela ser normalmente aplicada em idosos incapacitados, a advogada do pai de Britney assegura que os interesses do tutelado são visados. Então, a partir do estabelecimento dessa assistência pelo juiz, os entrevistados explicam com clareza o papel de Jamie Spears como tutor na vida de sua filha, desde controlar suas finanças até decidir quando ela pode ir ao médico.
Embora seja considerada incapacitada pela justiça, a obra torna explícito como Britney Spears voltou a trabalhar após o primeiro ano da tutela. A cantora lançou álbuns, realizou turnês e até mesmo um documentário para a MTV chamado Britney: For The Record, uma das raras oportunidades em que o público tem acesso ao relacionamento entre pai e filha. Isso porque o processo distanciou a artista de seus fãs, que começaram a se preocupar com o sumiço de meses depois do cancelamento de sua nova residência em Las Vegas por conta da saúde de Jamie Spears.
Essa inquietação foi intensificada após os seguidores de Britney Spears desconfiarem que ela estaria pedindo ajuda através de postagens peculiares no Instagram, o que proporcionou a criação do movimento #FreeBritney. A hashtag se disseminou na internet e o público queria saber o que estava acontecendo com a princesa do pop. Durante essa eclosão, o documentário aponta que a cantora estava internada em uma clínica de reabilitação e que, embora Jamie tenha se demitido de parte da tutela, ele ainda é responsável pelos bens da artista. Fato que contribui para o mistério do caso, considerando que o advogado de Britney atestou o medo dela em relação ao próprio pai e o desejo de não trabalhar enquanto ele for o seu tutor.
Framing Britney Spears: A Vida de uma Estrela termina com o sentimento dos fãs pela artista, razão responsável pelo movimento, que aqui é explicado para os telespectadores de maneira nítida, mesmo com as incógnitas presentes no caso. O uso das gravações é feito com inteligência pois são introduzidas no momento exato, assim, facilitando a comoção pelo assunto. Do mesmo modo, a variedade de fontes também permite a veracidade dos fatos e o cumprimento da promessa do documentário de impactar quem assiste. O participante Caio Afiune, do programa Big Brother Brasil 2021, se revoltou com a situação da cantora, e o cantor Justin Timberlake se desculpou em público pela misoginia sofrida pela princesa do pop.
Esse caráter provocador de comoção e revolta presente na obra também possibilitou a longevidade da discussão em torno do tema. Mesmo após 6 meses de seu lançamento, as novas informações sobre a tutela e o progresso do caso na justiça são tratados constantemente pela mídia. Alguns exemplos das notícias que repercutiram internacionalmente são: o depoimento de Britney em que ela revela ser impedida de engravidar, a autorização para a cantora poder escolher seu advogado e a proposta de lei inspirada em sua situação.
Com tal característica, Framing Britney Spears: A Vida de uma Estrela foi indicado ao Emmy 2021, uma das principais premiações da televisão, onde também irá disputar o prêmio de Melhor Documentário ou Especial de Não-Ficção ao lado de Boys State, The Bee Gees: How Can You Mend a Broken Heart, O Dilema das Redes e Tina. A narrativa da tutela de Britney Spears se destaca entre os concorrentes por retratar a história de uma mulher através das lentes de uma diretora, que sente na pele a repercussão da misoginia, um dos pilares desse relato. Assim, a obra nos faz refletir se a carreira da princesa do pop teria tomado o mesmo rumo caso ela fosse um homem.