Vitória Gomez
Vivendo na linha tênue entre mainstream e marginal, o Cinema de Horror encontrou terreno fértil no público nos últimos anos. A A24 é um dos exemplos de produtora e distribuidora independente que, dando liberdade criativa para seus realizadores, lançou sucessos instigantes à audiência e à crítica, e pareceu reacender uma chama que sempre existiu no gênero, geralmente renegada ao lado B. Assim, a produtora assumiu um papel relevante em catapultar ao estrelato obras discretas sob o seu merecido selo de qualidade. Foi o caso de Fale Comigo: chegando aos cinemas mundiais já sob o título de “melhor terror de 2023”, o longa de estreia dos irmãos RackaRacka saiu da Austrália para ganhar o mundo mostrando tudo que o Horror sempre teve a oferecer.
Na trama, Mia (Sophie Wilde), que se aproximou da melhor amiga Jade (Alexandra Jensen) após a morte da mãe, busca uma distração para o luto. Em uma festa de adolescentes do subúrbio, elas descobrem um ritual envolvendo uma mão embalsamada que supostamente invocaria espíritos e permitiria a possessão. Os jovens usam e abusam da prática como lazer – e para se provar uns aos outros -, até que as regras do rito são quebradas.
Os diretores RackaRacka, também conhecidos pelos nomes de batismo Danny e Michael Phillippou, logo indicam o que está acontecendo naquela garagem de casa do subúrbio australiano: adolescentes são idiotas e tomam decisões imbecis – e, como exemplificou Pânico, o contexto de uma festa é ainda mais perigoso. O princípio é algo que permeia o terror há décadas e é quase unânime comprar que, sim, jovens são estúpidos e as piores situações acontecerão se depender deles.
Em Talk To Me (no original), o buraco é mais embaixo. O roteiro de Danny Philippou, Bill Hinzman e Daley Pearson escolhe aprofundar a situação de Mia. A protagonista perdeu sua mãe há um ano e, desde então, não sabe exatamente a causa para isso, já que seu pai não revela o que realmente aconteceu. Desconfiada, afastada da família e se sentindo sozinha, a personagem é o alvo perfeito para o que acontece em frente a mão embalsamada: jovens acendem uma vela para abrir a porta para o além, seguram o objeto, entoam “fale comigo” para invocarem os espíritos e “eu te deixo entrar” para serem possuídos.
A possessão é controlada, a princípio. Seguindo a regra dos filmes de Horror com um objeto sobrenatural, como Ouija ou Verdade ou Desafio, os Phillippou criam uma mitologia própria para o ato, que pouco faz sentido e, como toda boa obra do gênero, foi repassada da maneira mais tosca e divertida possível – um conhecido de um conhecido falou e ninguém nunca ousou discordar. Aqui, as exigências são simples e basta não deixar o espírito no corpo por mais de 90 segundos e apagar a vela no final. Como é de se esperar, na vez de Mia, é tudo isso que não acontece.
A previsibilidade acaba aí, já que Talk To Me traz uma nova roupagem às histórias de possessão. Primeiro, nada de um flashback sobre como o objeto se tornou amaldiçoado. Segundo, sob hipótese alguma adolescentes em uma festa discutirão algo relacionado a religiosidade – em que mundo real isso aconteceria? Os Phillippou fogem da obviedade de discutir dilemas místicos do porquê aquilo os aflige e do didatismo da situação, encarando as coisas pelo que elas são: apenas um bando de jovens aceitando participar de um desafio perigoso na frente de câmeras e lives alheias para não serem taxados de frouxos. Afinal, todos querem pertencer e se sentir acolhidos.
Aqui, invocar espíritos e permiti-los tomar conta do corpo, mesmo que por 90 segundos, é consensual e funciona como um droga recreativa. E como toda droga, vicia os personagens e os faz querer ir além. Eles sequer lembram que é possível conversar com os possessores sem deixá-los entrar e o imediatismo e a impulsividade típicos da geração Z tomam conta do elenco, composto quase inteiramente por jovens. Com a exceção da mãe de Jade e Riley, interpretada calorosamente pela veterana Miranda Otto, e do ausente pai de Mia, vivido por Marcus Johnson, os adultos nunca estão por perto e, quando estão, não escutam o que os mais novos têm a dizer. Não é de se estranhar que a brincadeira tenha ido tão longe.
Só que deixar tudo na mão de adolescentes é um tanto arriscado. Quem vai resolver tudo quando o terceiro ato estiver caminhando para a conclusão? Logo de início, Fale Comigo escancara o quanto os RackaRacka aproveitaram da liberdade criativa. Eles, que chegaram a recusar uma proposta de financiamento de um grande estúdio para não terem que limitar suas ideias, abusam do que aprenderam no YouTube e constroem uma narrativa dinâmica, que equilibra momentos de tensão à profundidade do roteiro – frequentemente unindo os dois. É quase automático lembrar que Mia é uma pilha de desconfiança e dúvida, que fará de tudo para sentir e acreditar em algo – ainda que esse algo venha de uma voz do além.
Justamente porque a introdução já vendeu brilhantemente o conceito mais básico do Horror – jovens são estúpidos! -, a produção equilibra os atos para dar espaço ao luto e ao sentimento de pertencimento que moram na protagonista. Mesmo quando a linha narrativa é desvendada, as escolhas dos diretores de continuar a empurrando aos extremos, sem seguir fórmulas de jumpscare, dilemas morais sobre como resolver a situação ou saídas heróicas, mostra uma personalidade que se recusa a aceitar o óbvio, mas sempre procura pelo inesperado.
Para além do que se acompanha, o que se vê também eleva os méritos dos realizadores. Seja para contornar a falta de orçamento ou por uma escolha estilística, Fale Comigo abusa dos visuais práticos para criar uma identidade marcante entre as inúmeras possibilidades do Horror. A exemplo de A Morte do Demônio: A Ascensão, que, mesmo com um orçamento menos modesto, optou pela praticidade e conseguiu carimbar cenas na mente do espectador, será difícil esquecer das sequências em que os adolescentes recebem os invasores em seus corpos (dirigidas livremente e aos gritos pelos irmãos Phillippou) ou das que Riley está longe de si.
Nisso, o departamento de maquiagem de Talk To Me mostra a que veio – CGI não faria melhor nem se tentasse. No entanto, os principais aliados do roteiro e da direção são os próprios atores. Apesar de não ganharem um aprofundamento mínimo, dando a sensação de que são praticamente descartáveis, o grupo de jovens que empurra o longa para frente só o faz pela veracidade com que interpretam personagens com idades semelhantes às deles mesmos.
Enquanto Zoe Terakes, intérprete de Hayley, é rebelde (aparentemente) sem causa, Alexandra Jensen vive uma Jade tão sem sal que poderia ser uma típica adolescente de 16 anos com problemas tão importantes como beijar o namorado. Ainda assim, as performances sabem se dosar e crescem para além das personalidades iniciais quando o pior começa a acontecer, assumindo um desespero palpável. Já Joe Bird, na pele de Riley, o irmão mais novo e pré-adolescente de Jade, mescla entre a inocência e a bizarrice, em uma escalada impensável proporcionada pelo roteiro.
No entanto, o grande nome de Fale Comigo é Sophie Wilde. A menina dos olhos de Danny e Michael Phillippou não deixa espaço para competição no protagonismo da obra e dá uma nova carga dramática e psicológica a toda cena que participa. É na pele da atriz que Mia vira uma personagem identificável, mesmo quando repreensível. A empatia evocada é mérito da própria intérprete, que clama por conexão, respostas ou apenas algum alento em meio à dor a cada novo “fale comigo”.
Escancarando elementos do Horror que já pipocaram em algumas outras produções, o trunfo de Michael e Danny Phillippou é sabê-los incorporar em uma história envolvente, uma visão aterrorizante e marcante em uma condução que não deixa o espectador piscar os olhos. Sobretudo, surpreende ao dar um novo ponto de vista a um subgênero consolidado, o deixando na mão de jovens enlutados, sozinhos e desesperados por afeto, atenção ou um breve momento fora de si. Com uma história fechada, Fale Comigo também se aproveita das pontas soltas que provoca – afinal, o didatismo não é o ponto forte dos diretores e cabe ao público pensar por si mesmo. Em caso de dúvidas, basta segurar a mão, acender a vela e entoar “fale comigo” mais uma vez.