Raquel Dutra
O termo que significa um estado transcendental de alegria é usado para nomear uma obra que existe no nível mais profundo das dores de uma juventude autodestrutiva para nos avisar sobre algo: desde seu início, aclamado e conturbado lá em 2019, Euphoria não quer saber de nada além do radical ao construir seu caminho na companhia de jovens que lidam com muitas, muitas, mas muitas questões. A máxima se consolidou ao fim visceral daqueles 8 primeiros episódios que colocaram o drama adolescente da HBO numa evidência maior que qualquer nicho. Ali, nossas protagonistas, responsáveis por engatilhar o desenrolar dos arcos da narrativa e toda sinceridade e todos problemas que os acompanham, se encontravam num lugar perfeito de completa ausência de resolução.
A complexidade que o diretor e roteirista Sam Levinson criou ao fim do primeiro ano de Euphoria só seria compreendida mais tarde, quando os ganchos de 2019 ameaçavam se perder no meio da fenda temporal aberta pela pandemia de covid-19. Então, o criador correu para os transformar em dois episódios especiais, dedicados exclusivamente ao centro da história – Rue (Zendaya) e Jules (Hunter Schafer) -, e quando Part 1: Rue foi ao ar em dezembro de 2020, o poder da narrativa se mostraria ainda maior. Sob o título de Trouble Don’t Last Always, aconteceu o primeiro contato da produção com o mundo depois de sua estreia, e também o primeiro encontro do apreciador da série com a profundidade emocional daquela que foi o fio narrativo de tudo o que Euphoria nos apresentou.
Era, então, o momento de prestar atenção na individualidade de Rue, antes de seguir as tramas de uma história que se propõe a retratar a juventude de forma radical. E quando encontramos a personagem em Part 1: Rue, topamos com uma sobrevivente do final tempestuoso do primeiro ano de Euphoria. Abandonada por Jules, enfurecida com todos, vulnerável como nunca e machucada como sempre, a personagem é vencida pelo seu vício em drogas e tem uma recaída. A única ajuda que a teimosia envergonhada de Rue aceita é a de Ali (Colman Domingo), meio amigo e meio mentor, que estabelece uma conexão com ela no grupo de Narcóticos Anônimos. Dramático e radical o suficiente? Não para Sam Levinson, que finaliza a premissa do episódio com os dois solitários em plena véspera de Natal numa lanchonete qualquer da cidade.
O encontro desencadeia uma longa e profunda conversa que toma os 60 minutos do episódio. Adentrando a profundidade psicológica de Rue, muitas questões surgem, e a sabedoria de Ali, que já vive longe do vício há sete anos, sabe identificar todas elas, sem se preocupar em solucioná-las. O foco ali é o desabafo da personagem, e a realização da oportunidade que ela precisava para revelar seus sentimentos complexos e delicados, depois do sufocante último episódio da primeira temporada.
Esse efeito é curioso, já que a história não escapa um segundo de sua perspectiva. Rue é a narradora absoluta – mas não totalmente confiável – de todos os eventos da série, e justamente por isso, é difícil adentrar sua intimidade debaixo de toda aquela energia caótica, como batiza o próprio Ali. Mas entre as digressões de Part 1: Rue, a personagem finalmente tem a permissão de viver intensamente suas oscilações emocionais, sentir o medo que ela esconde ter de si mesma, e tentar compreender sua relação com Jules, ao mesmo tempo em que revela mais de sua própria personalidade longe de tudo o que acompanha o núcleo de Euphoria.
Os méritos da Melhor Atriz em Drama do Emmy 2020 na personagem que a fez fazer história são sempre louváveis, mas o que se destaca aqui também é, mais uma vez, o trabalho de Sam Levinson. Encarando uma base em suas experiências pessoais, o texto de Trouble Don’t Last Always se preocupa de forma quase científica com os diálogos. Tão naturalmente prolixo e propositalmente direcionado, o roteiro do episódio faz Rue e Ali pensarem sobre a vida, sobre a morte, sobre o espiritual e sobre o mundano. E em algum momento da conversa, a situação da jovem diante do mundo toca no tópico indissociável porém ainda ausente na história radical de Euphoria: revolução.
A palavra surge na conversa quando o emocional de Rue mostra suas faces mais sombrias. Ela revela sentir-se culpada pela sua própria condição, pelo que trouxe à sua família – a mãe (Nika King) e a irmã mais nova Gia (Storm Reid) -, e pelos conflitos com Jules, fazendo nascer na adolescente um sentimento de desistência e conformidade. Como alguém que já pensou sobre aqueles dilemas muitas vezes nos momentos difíceis do vício, Rue é sutilmente impaciente, mas também levemente desesperada por novas possibilidades, e ao mesmo tempo, amargamente desesperançosa. Diante da confusão sentimental de Part 1: Rue, Ali, muito provavelmente o maior revolucionário de Euphoria, responde às constatações de Rue.
– As drogas mudam a pessoa que você é.
– Mas eu não estava drogada.
– As drogas mudam a pessoa que você é.
É a partir daí então que o episódio mostra de vez quem realmente é Rue e qual é a sua real situação. Em meio aos sentimentos da jovem perante ao mundo, Trouble Don’t Last Always faz isso através de Ali, que percebe a complexidade da situação e identifica os efeitos da chamada “doença do vício” na sua perspectiva de vida. Mas na história de Sam Levinson, não existem moralismos nem conclusões rasas. Ainda nas palavras de Ali, existe uma crítica direta ao imediatismo das revoluções, em meio às referências a Malcolm X e Martin Luther King que o mentor prega para a adolescente. Part 1: Rue aponta para a raiz do problema, e ainda que não exista uma solução, podemos imaginar uma transformação.
Mas antes de adentrar o espaço da Revolução de Rue, o Episódio Especial de Euphoria imagina como as coisas teriam sido se o final daquela primeira temporada fosse diferente. E se Rue e Jules seguissem seu plano de fuga e construíssem uma nova vida juntas? A primeira cena responde, naquela identidade teatral magnífica, junto das cores quentes que se tomam o lugar dos tons frios à medida em que o amor de Rue por Jules preenche o ambiente. Mas não demora muito pro sonho se perder na realidade, e quando a paixão já se diluiu no ressentimento, na culpa, tristeza e dor, o visual, elemento tão fundamental de Euphoria, materializa o temperamento da personagem principal.
É exatamente quando Rue volta ao uso de drogas que aquela essência etérea do romance e do sonho que ela vive com Jules se transforma num cenário obscuro, soturno, inóspito e repelente, mas curiosamente e fidedignamente, nunca incômodo. E então, num movimento rápido da câmera de Marcell Rév que colocou Trouble Don’t Last Always no Emmy 2021, estamos naquele momento que vai mudar muita coisa que ela pensa sobre si mesma, sobre o mundo e sobre os outros. E assim também é a Revolução de Rue em nós.
Mesmo sozinha e despedaçada, Rue ainda pulsa o desejo latente de ver as coisas sendo diferentes. Ela tenta descobrir o que fazer com isso, enquanto sente a dor dos que sabem que o mundo é um lugar terrível e percebem que todos parecem aceitar isso bem demais. Rue não quer ser parte disso. Rue não quer sequer presenciar isso. Então, a obra, que já revolucionou com a sinceridade, intensidade e profundidade com que trata seus temas, usa Part 1: Rue para revolucionar sua protagonista do jeito que pode. No caos emocional de Rue, existe um conselho ousado: Problemas não duram para sempre, é a mensagem central da voz agridoce de Euphoria naqueles 60 minutos.
No meio deles, a protagonista da trama desabafa sobre sua vontade de apenas desistir e o desconforto que sente vivendo no mundo que vive. Ali vai desejar um feliz Natal para as filhas pelo telefone, enquanto Rue lê uma mensagem de Jules, que diz que sente saudades junto de uma música. A canção que marca o Episódio Especial de uma produção que leva cada aspecto tão a sério não poderia ficar de fora dos sentidos criados dentro dele. E ao som de Me In 20 Years, a radicalidade de Euphoria aponta que a maior transformação de Rue é encontrar uma forma viver.