Vitor Evangelista
No ano em que a franquia Drag Race não tira nem uma mísera semana de folga, o número exorbitante de temporadas pode enfraquecer a marca, ou simplesmente levá-la à exaustão do público. Entre as corridas “mais importantes” (a americana e o All Stars), estreou Drag Race España, a primeira leva de capítulos em espanhol de DR. No fim das contas, o que a season teve de baixo orçamento, ela compensou no fator divertimento.
Era uma patifaria atrás da outra, cada perrengue causava mais riso que o anterior e na contramão de coroar uma vencedora paspalhona, España deu o título de Super Estrela Drag Espanhola para a contundente Carmen Farala, uma das drag queens mais completas a se montar no Ateliê (e que, sem dúvidas, colocaria uma porrada de competidora estadunidense para comer poeira).
Como virou costume das temporadas internacionais, 10 rainhas entraram na competição rosa-choque e azul-bebê na Espanha, prontas para ganhar, além do título, da Coroa e do Cetro, um cheque de 30 mil euros. Explorando sem dificuldades o carisma das drags, a produção desse spin-off não esbanjou nem de longe o orçamento avantajado que suas irmãs europeias, como o UK e o Holland o fizeram no passado. A saída foi abraçar o precário e não se estressar muito com isso.
Supremme de Luxe, uma drag conceituada no país, assumiu o posto de apresentadora, mas sua falta de preparo transpareceu nas muitas vezes que olhava para a câmera, aguardando direções dos produtores nos bastidores. A Mother desta edição conduziu sua Corrida das Loucas da melhor maneira que pôde, brincando e se emocionando pelo caminho. Entre os momentos marcantes de Supremme, vale a menção do embate com Inti no Ateliê e o chororô no episódio final, quando as competidoras agradeceram seu tato e cuidado sensível.
Além disso, a tradução das milhares de frases de efeito do programa de RuPaul tornaram a experiência de acompanhar Drag Race España um verdadeiro deleite. Era hora de desligar o cérebro e gargalhar com o “don’t fuck it up” transformado em “no la cagueis”, e com o afeto final de RuPaul sobre amor próprio se transmutar em um breve poema, gritado com emoção pelas queens restantes no episódio. Entre safras de temporadas mais potentes, como a de Symone e o All Stars 6, os nove episódios do España limparam o paladar de quem acompanha Drag Race desde o primeiro dia do ano.
A zona começou com a chegada das drags e a eliminação de The Macarena, uma das quatro participantes que se identificam com o não-binarismo. A queen era carismática, mas não impressionou o suficiente, perdendo a Dublagem para Dovima Nurmi, uma chata de galocha, que, infelizmente, durou muito. Drag Vulcano, natural das Ilhas Canárias, foi a segunda a dar adeus. No fim, nos lembraremos dela por seu salto plataforma, que transformava sua silhueta em um andaime de peruca. Além de mostrar a vibe local, os capítulos iniciais revelaram ao mundo que a Espanha preza muito mais por uma drag de ilusão feminina do que por uma assinatura artística.
Por essa razão, fica fácil entender o motivo da saída prematura de Inti, drag boliviana e residente da Bélgica, não-binária e super avançada em seus conceitos. Fosse essa qualquer outra temporada de Drag Race, Inti seria finalista e provavelmente coroada, mas as incessantes críticas injustas dos jurados (em especial da rata Ana Locking) fizeram-na desistir logo no episódio 3. Adendo a isso, a represália que a latina recebeu pelo visual de sua terra natal retorna a franquia à questão de racismo e do preconceito à qualquer manifestação fora do padrão europeu.
Além do didatismo pragmático na hora de julgar a arte drag, a precariedade da produção do show ficava clara de diversas maneiras. Supremme vira e mexe ajudava as competidoras em trabalhos técnicos, a trilha musical oscilava na edição e elementos novos eram inseridos ao longo da temporada (como gags sonoros), sem qualquer padronização na hora da montagem. Ademais, as Dublagens se estendiam pela canção completa, dando uma canseira do diabo nas queens e no espectador, obrigado a assistir mais de 1 hora semanal de episódio.
A brilhante Arantxa Castilla-La Mancha foi a quarta eliminada, deixando o Ateliê mais triste e menos barulhento. A autodenominada Hannah Montana espanhola patinou na competição, mas seu carisma valeu mais que qualquer vitória nos desafios. O look usado na Final, em referência a Pânico, apenas reafirmou a mente avançada de Arantxa, umas das pérolas de Drag Race em 2021. Depois dela, o roubo do século mandou Hugáceo Crujiente embora.
Hugáceo, a drag queen com assinatura mais valorosa e destemida do ano, construiu uma narrativa de cansaço ao redor de sua jornada na Corrida. Depois de vencer o primeiro desafio (e esquecer desse fato, em uma cena digna da NBC), a artista foi tropeçando nas injustas avaliações dos jurados, pouco interessados em louvar um estilo drag que se localizava muito mais no campo da Arte abstrata do que na seção de lingerie da C&A. Hugáceo saiu exausta, mas sabendo que sua impressão, a là Sasha Velour, ficará por um bom tempo na cabeça de quem torrou o saco assistindo Sagittaria aparecer igual toda semana na passarela sem ouvir um ‘a’ à respeito.
Outro elemento que encheu o pacová do espectador foi a aspereza de Dovima Nurmi. Nada engraçada ou carismática, ela se recusava a sorrir e entrar na bobeira que foi o España. Seus visuais sustentavam um senso estético interessante, mas com uma personalidade daquela, era mais interessante colocar vestido em um manequim e assisti-lo desfilar. Dovima marcou a competição ao Dublar sozinha após a desistência de Inti, e, mais tarde, se recusar a Dublar contra sua amiga e ex-colega de casa, Sagittaria, em uma trama sem conclusão que os produtores aparentemente esqueceram de narrativizar.
A última eliminada antes da final foi uma das maiores estrelas que a franquia Drag Race, começada lá em 2009, já apreciou: Pupi Poisson. Carismática, doida da cabeça, incapaz de segurar o riso e uma mocatriz completa. Pupi navegou semanas sendo elogiada e elevada, mas teimou em conseguir sua primeira e merecidíssima vitória. Infelizmente, a partir daí, a espanhola passou a desapontar com vestidos mal acabados, um rombo criativo em sua personalidade estática e apaixonante.
Pupi Poisson representou uma drag distinta da que o público domesticado com as acrobacias e as cinturas milimétricas dos EUA está acostumado. Palhaça de tudo, Pupi era o equivalente a um “tio de perucas”, primorosa em entreter, nem que para isso fizesse papel de tonta. Na verdade, ela adorava desempenhá-lo, fosse derrubando uma escova de cabelo diante de um momento tenso pré-Snatch Game, fosse afinando a voz no Jogo das Imitações ou pisando em uvas ao lado de Carmen no Mini-Desafio mais legal da história do programa.
Sua despedida, na semifinal, foi a mais dolorosa da temporada. Dublando contra Sagittaria e Killer Queen, o histórico positivo pouco importou, mandando Pupi embora, tristonha mas realizada. Sua narrativa só findou, entretanto, no reencontro das queens, quando recebeu o título e a faixa de Miss Simpatia. Afinal de contas, Pupi não poderia sair de Drag Race España sem algo único para chamar de seu.
Quem chegou à Final, ao lado de Carmen, foram duas drag queens competentes e estilosas. Killer Queen começou a temporada tímida e só brilhou para valer no Snatch Game, imitando uma política local que a levou ao pódio da semana e sacramentou sua vaga na finaleira. Em Drag Race España, o Jogo de Imitações, de maneira surpreendente, não foi um completo desastre.
Performances bem incorporadas e visuais certeiros fizeram do desafio um destaque morno da temporada. O grande problema para esse apagamento do Snatch foi justamente a distribuição logística da season, que, pela primeira vez na franquia, abriu um capítulo com o Desafio de Leitura, prosseguiu com o Jogo dos Pontinhos e finalizou com um Ball, mas sem o fator de construção das vestimentas.
Eu falei que essa temporada era uma zona, certo? E, nessa confusão, quem também quase cruzou a linha de chegada foi Sagittaria. Uma das drags mais novas do elenco, Sagi pegou sua inspiração na superstar Aquaria e, por mais que no começo da season ela pareceu esboçar traços individuais de estrelato, a jovem virou uma caricatura de si mesma (e de sua “mãe” americana).
Sem narrativa, trama de superação ou qualquer êxito que a catapultasse para o olho do furação, Sagittaria passou semanas repetindo peruca loira e olhão preto, desinteressada em diversificar. Além disso, o fato de Carmen levantar a questão da falta de vulnerabilidade da colega, às vésperas do Desafio Final, acabou com qualquer hipotética chance de triunfar naquele cômodo lotado de 2 personalidades maiores e 2 tramas mais apetitosas do que a garota espanhola que se inspirou em Aquaria e parecia emular cada respirada da vencedora estadunidense.
Em uma temporada aparentemente aberta, Carmen Farala engrenou em uma subida invejável, acumulando 3 vitórias, além de ter exibido dotes na comédia, na atuação e na costura (quando deixou a convidada Envy Peru de queixo no chão). Sinto que, para sempre, serei acompanhado pela figura de Farala meio-zumbi comendo banana com cara de nojo (e digo isso de maneira positiva). Ela também se deliciou nas passarelas temáticas, com destaque para a homenagem à Veneno, a Noite de 1000 Rosalías e o Makeover de Sherlock Holmes. A parte mais engraçada dessa avalanche de talento? Carmen Farala revelou que nunca assistiu à Drag Race antes de ser escalada para o elenco do España.
Entre Desafios mal bolados, julgamentos idiotas (a imparcial e nada profissional Ana Locking merecia a represália sofrida por Jeffrey Bowyer-Chapman, e até pior), um elenco que babava carisma e uma vencedora inigualável, Drag Race España apresentou o mundo para uma fração da arte europeia ainda não explorada na franquia de RuPaul, além de nos matar de rir toda semana, no melhor estilo programa da Rede TV!. Obrigado Pupi, Hugáceo e Inti, obrigado Carmen, obrigado a todos.