Raquel Dutra
O décimo primeiro dia do Festival do Rio 2021 ficou por conta da direção e protagonismo da cineasta francesa Maïwenn e seu DNA. Vindo da Seleção Oficial do Festival de Cannes 2020, o filme contempla aspectos da vida de sua criadora no centro de uma família que carrega a ascendência argelina de um amado avô, exilado no colonizador europeu e inflamado de saudade da sua terra natal. Pelo toque diretora, o drama se desenrola com vislumbres políticos e risos sagazes, indo em direção à uma obra rica em camadas que pulsa um desejo de compreensão de origem, herança, laços e identidade.
O caráter reflexivo de DNA não poderia partir de um contexto mais caótico, e é aqui que o trabalho da também roteirista Maïwenn brilha na obra que traz muitas das suas vivências pessoais para uma tela de Cinema. Depois de nos apresentar ao filme através de momentos singelos em que a família visita o avô Emir Fellah (Omar Marwan) na casa de repouso, a linguagem da cineasta nos comunica algumas coisas. Entre elas, o que se compreende é que aquela definitivamente não é uma família perfeita, e que o elo que os une não continuará ali por muito tempo.
Quando o coração do filme para de bater, a família calorosa e disfuncional precisa seguir em frente com seus problemas ao mesmo tempo em que dizem adeus à figura mais amada de suas vidas. Então, DNA se mostra como um filme efusivo e conflituoso. Os sentimentos estão à flor da pele, e em meio a carga emotiva do luto de uma pessoa tão amada, tudo se transforma em uma questão e os problemas parecem gritar que não podem mais ser ignorados.
Tudo isso poderia se transformar num belo melodrama, mas além de DNA não ser um filme sobre luto, ele também não se concentra no núcleo amplo da família e não procura uma soberba seriedade. Primeiro, a obra recusa o ideal de elegância e a polidez que são esperadas diante da morte para dar ainda mais efeito na sua narrativa familiar. Existe muito respeito e dor naquele momento, mas também existem muitos outros sentimentos desencadeados pelo falecimento do avô que procuram vazão naquelas personalidades excêntricas.
No vai-e-vem emocional causado pelos múltiplos tons do filme, a real premissa e protagonismo de DNA não demora a se revelar. O olhar certeiro da neta Neige guarda um conflito de identidade – debaixo da lente castanha que esconde aquele azul europeu ou por trás das vestimentas imitando o estilo de Amy Winehouse -, e diante da ausência do avô, que a criou junto do amor, saudade e identificação que conservava pela sua pátria, essa questão precisa ser resolvida.
Então, a personagem de Maïwenn captura toda a nossa empatia assim como toda atenção do filme. O luto pelo avô cria naquela mulher uma obsessão pela sua origem, que vai desde testes duvidosos sobre a composição do seu DNA – e uma decepção engraçada com os resultados que encontra – até uma teimosia para conseguir sua cidadania argelina com documentos insuficientes. A resolução de seu arco é simples, assim como a premissa do filme, mas rica nas subjetividades e nos significados dos eventos que a acompanham. E quando o sorriso genuíno de Neige brota em meio ao fervor do país que ela foi ensinada a amar, fica claro que DNA não precisa de mais nada.
É fato que o roteiro e direção de Maïwenn favorecem a personagem de Neige antes de qualquer outra, mas o elenco de ouro de DNA não fica para trás do ritmo do filme. Louis Garrel rouba todas as cenas em que participa como François, o amigo mais próximo da nossa protagonista, em cenas irônicas que carregam uma naturalidade inacreditável. Da mesma forma, o Kevin de Dylan Robert nos diverte em meio aos olhos cheios de lágrimas com as cenas de cuidado com o avô na casa de repouso.
A mãe singular de Neige vivida por Fanny Ardant não só brilha no filme como também rouba as atenções no velório do pai, ao aparecer para o evento visivelmente abalada. Considerando a narrativa de DNA, Carolline ainda protagoniza uma das cenas mais importantes e significativas do filme, que marca o movimento da obra de adentrar cada vez mais a perspectiva da personagem de Maïwenn, quando na cerimônia de velório de Emir, o discurso da neta é bruscamente interrompida por um surto da mãe.
Os contornos autobiográficos de DNA criam um filme que é, acima de tudo, constrangedor de verdadeiro. A trajetória de altos e baixos de Neige em busca da sua própria identidade e dos vínculos criados com a história de vida de seu avô são carregados de beleza graças à sinceridade que exprimem. Afinal, na experiência humana moderna sempre existe um momento em que as nossas raízes chamam pela nossa atenção. E a saída que a história de Maïwenn encontra é olhar para dentro de si mesma, encarar tudo o que existe lá e concluir: “vocês são parte do meu DNA“