Caroline Campos
Não são necessários floreios de apresentação quando se trata de Stephen King. O autor já passou por palhaços do mal, carros do mal, cachorros do mal, garotas do mal, hotéis do mal e, mesmo assim, parece que sua fonte da criatividade não se cansa de jorrar ideias para serem passadas ao papel. Depois, terceiro livro da parceria com a Companhia das Letras, é mais uma de suas empreitadas pelo mundo dos espíritos. Dessa vez, no entanto, pode-se dizer que sua narrativa é mais otimista e divertida do que sombria e aterrorizante para os parâmetros do Mestre do Terror.
É fácil se ludibriar com as meras 192 páginas de Depois, publicado sob o selo da Editora Suma. King sabe exatamente o quanto de sua história pretende contar – o suficiente para empolgar e trabalhar em cima de seus personagens e o necessário para esganiçar a curiosidade do leitor e deixar pontas estrategicamente soltas que só ganharão nós na imaginação de cada um. Quando o livro chega ao fim, o equilíbrio entre a finalização perfeita e o desejo por mais informações é a utopia de qualquer escritor.
A história de Jamie Conklin funciona quase como um coming-of-age sobrenatural. Desde sempre, o garoto vê gente morta. Com que frequência? Bem, quando elas morrem, claro. Por sua breve experiência conversando com fantasmas, ele sabe dos seguintes fatores: os mortos somem depois de alguns dias, estão sempre do jeito que morreram e eles definitivamente não podem mentir. Diferente dos vivos, que respiram por seus segredos, os mortos não conseguem carregá-los para os túmulos.
Quem conduz a narrativa é um Jamie de 22 anos que não hesita em afirmar: “essa história é de terror”. Fomos avisados, mas a ficha demora bons capítulos para cair. Os fantasmas estão longe de serem os maiores contratempos do garoto, que passa por perrengues financeiros durante o colapso econômico de 2008 e lida com o relacionamento instável da mãe com Liz Dutton, a policial que, depois, vira o centro de todos os seus problemas. O advérbio-título, inclusive, se torna a palavra preferida do personagem, afinal, ele só resolve refletir sobre a tumultuada infância e adolescência depois.
Stephen King se desvincula de sua persona para dar lugar aos vícios de escrita de um jovem adulto que ainda tem dificuldades em traçar uma linha de raciocínio pelo período mais punk rock de sua vida até agora. Jamie gosta (e muito) de brincar com o uso de parênteses (todos os seus pensamentos atravessados se limitam a ficar dentro das curvas) e King, seu mestre-criador, dá liberdade total ao novato para navegar pelo mar de suas memórias (um mar bem agitado, diga-se de passagem).
Em Depois, não há espaço para questionamentos profundos e existenciais acerca do pós-vida. King, como faz durante todo o livro, apenas planta sementes esperando que seu leitor as colha – o que acontece com espíritos tomados pelo ódio? E àqueles que viveram cercados de amor? O paradoxo é cutucado, mas bem pouco manuseado pelo escritor. O bicho-papão de Jamie, que encarna no corpo já morto de um terrorista, poderia muito bem estrelar o próximo Atividade Paranormal; ele é mau, sem explicações, sem background, sem aprofundamento. O leitor que decida o que fazer com essa informação.
Apesar dos aspectos sobrenaturais, não falta humanidade na vida de Jaime. A história flutua entre os seis e os quinze anos de idade do jovem e, por incrível que pareça, os espectros são meros coadjuvantes entre todas as suas preocupações, que envolvem desde o desenho infantil de um peru verde até as borboletas do primeiro beijo. Seu relacionamento com Thia, sua mãe, e com o professor Burkett, antigo vizinho, mantém Jamie com os pés no chão. Stephen King quase reforça: uma boa base familiar evita que até mesmo crianças traumatizadas com gente morta fiquem doidas. Na medida do possível.
As contradições que envolvem Liz dão o pontapé final para o mais próximo de um clímax que Depois possui. Bem, digamos que é muito pior lidar com uma mulher armada chapada de cocaína do que com um espírito com a cabeça estourada. Nada, no entanto, é exagerado. Jamie possui apenas 15 anos e ainda vai enfrentar muitos clímax pela frente. King não só sabe disso como também acredita que seu leitor fiel vai entendê-lo. Quanto ao garoto, bem, ele pode pensar nisso depois, não é?
A tradução de Regiane Winarski, que transformou Later em Depois, dialoga com a empolgação do texto original, e as palavras de Jaime cativam mesmo escritas no nosso idioma tropical. O protagonista não cansa a paciência de quem o acompanha – é um adolescente curioso e decidido, mas sem pender para as chatices estereotipadas e pedantes que muitos autores tendem a associar com a faixa etária. Jamie é o sinônimo de herói, aquele que faz a gente torcer e se identificar, independente da diferença entre realidades.
“A gente se acostuma com as coisas extraordinárias. Aceita como normais. Podemos até tentar não nos acostumar, mas é o que acontece. Tem coisa extraordinária demais no mundo, só isso. Em toda parte.”
Depois pode não entrar no hall de obras inesquecíveis de Stephen King, mas é a prova de que o escritor não tem problemas em lidar com histórias comuns, mesmo que de pessoas extraordinárias. Esqueça os rituais demoníacos e os simitérios de animais. Aqui, os mortos se elevam à altura da vida que viveram, sem tirar nem pôr (não espere um além-vida divertido se você curte botar bombas em orelhões). A história de Jamie Conklin não acaba; ela fica para depois.