Nathalia Tetzner
Quando as luzes se apagam, um detetive ocupa a mente com crimes não solucionados. A insônia somente levanta para longe da cama quando uma presença feminina desconcertante o coloca para dormir ao ritmo de uma respiração acolhedora, justo dela, a suspeita de um dos incontáveis casos que afastam o sono. Entre gotas de colírio para elucidar a visão e potes de sorvete que tentam substituir o jantar, Park Chan-wook desconstrói o romance como um gênero constantemente flertado pelo Cinema, une os protagonistas através dos simbolismos da partição e deixa a porta aberta para a interpretação em Decisão de Partir.
A fim de falar de amor, Chan-wook escancara o tato inato de pioneiro e elabora ao lado de Jeong Seo-kyeong um roteiro que diz ‘eu te amo’ sem ao menos escrever as três palavras. Mantendo a singularidade e autenticidade que atravessa uma das filmografias mais notáveis da história, o diretor sul-coreano assina os papéis do divórcio entre as narrativas que tratam de relações amorosas e o audiovisual, casados em comunhão de bens há séculos. Com uma proposta inovadora, ele finalmente liberta o casal de uma representação datada, enraizada em um passado distante e reacende a chama da paixão que juntou estilo e meio pela primeira vez.
No entanto, se a violência faz glória com o vermelho sangrento em Oldboy (2003) e a nudez traduz a emancipação de A Criada (2016), Decisão de Partir adota elementos menos explícitos, mas ainda assim revestidos pelo plano de fundo cruel do cotidiano. Contraditoriamente leve, o enlace do thriller moderno parece pairar sobre o ar que ocupa o espaço desde as ondas do mar até o cume das montanhas, sendo responsável pela dicotomia que dita as regras da narrativa: “Confúcio disse: “Os sábios amam a água, os benevolentes as montanhas.” Eu não sou benevolente, eu gosto do mar”.
Jang Hae-joon e Song Seo-rae são as personificações de opostos que se atraem. Dominador, o instinto investigativo de Hae-joon coloca Seo-rae na mira de seu binóculo que transcende tempo e lugar. Com uma técnica de zoom peculiar e desconfortável, o público mergulha na imaginação do policial que, por sua vez, está totalmente perdido na intimidade mística da cuidadora de idosos. Teimoso e firme como as rochas, o ator Park Hae-il desloca o seu personagem para o choque estrondoso com as águas cristalinas da atriz Tang Wei, dona de uma atmosfera etérea em seu papel.
O conjunto dinâmico da dupla não somente caracteriza o duelo de personalidades, como também abre margens para as diferentes interpretações do longa, colocadas em xeque a todo o momento devido a montagem apoteótica de Kim Sang-bum, parceiro de longa data de Park Chan-wook. Extasiante, sinuosa e por isso mesmo que funciona, a ordem dos planos é o que captura a atenção logo nos primeiros minutos, causando impacto com uma sensação arrebatadora que permanece até os créditos finais. Aqui, são as cenas de luta corporal e de cadáveres em decomposição que ganham uma amplitude que ultrapassa o grotesco.
Tal escolha de edição de Decisão de Partir confunde, pode ser amada ou odiada sem um meio termo, porém, o deslumbre da fotografia adiciona sentido e é novamente unanimidade na obra do cineasta. O genial Kim Ji-yong toma decisões que se ligam às propostas ambiciosas de Sang-bum, transformando a poluição nuclear em colírio para os olhos e um sorvete anêmico em refeição para o estômago. No meio de um paraíso visual, o vermelho das romãs, a fumaça embaçada do cigarro e o azul dos corpos de maridos assassinados são meros detalhes frente ao ápice: a cena do interrogatório em que o foco da câmera transita entre Jang Hae-joon, Song Seo-rae e os seus reflexos no espelho.
“Naquela noite em que você me encontrou no mercado, de repente você se sentiu vivo de novo, não é?”. Extremamente palpável, tanto pelas imagens que constroem a paisagem quanto pela trama fictícia que beira uma veracidade quase ‘pé no chão’, o filme cutuca feridas com a provocação de sensações à flor da pele. De modo inacreditável, esse esforço em evocar os seis sentidos faz do longa algo simultaneamente parado no tempo, a frente dele e atemporal. Com uma atmosfera ancestral que prende visão e audição e a sensibilidade corrente que toca olfato, tato e paladar, há a ainda busca pelo eterno nas entrelinhas.
O tema da obsessão não é novidade na trajetória cinematográfica de Park Chan-wook e, com 11 títulos exibidos nas telas do Cinema, o tópico parece igualmente perseguir personagens, diretor e público. Em entrevista ao The Film Stage, Chan-wook revelou que Decisão de Partir não é uma homenagem ao gênero noir, mas o resultado da leitura de romances policiais: ”Na verdade, esse é um pequeno truque meu: finjo que o filme é do gênero noir e, em certo ponto, nós desviamos do gênero.” Segundo ele e, de fato, o disfarçe de Song Seo-rae como uma femme fatale também contribui para essa subverção das histórias de amor.
Outro tópico intensamente pautado pelo cineasta sul-coreano é o conflito histórico entre a sua nação e os companheiros de continente. Rodeado por mil tentáculos, ele traz à tona um envolvimento lésbico para o contexto da ocupação japonesa no começo do século XX em A Criada. Agora, observando os problemas identitários que ressurgem na Coreia e são refletidos nas obras, Park Chan-wook sabiamente pontua os desafios do deslocamento asiático e o jogo da conquista que permeia a região desde os primórdios da civilização. Em 2022, é a morte misteriosa de um oficial de imigração aposentado que acende a luz sobre Seo-rae, a viúva chinesa.
Atordoante com as reviravoltas, a trilha sonora dificulta a digestão dos eventos e é esse o efeito que proporciona a continuidade do ambiente instaurado pela trama. Produzida com acordes estridentes de violinos e notas adocicadas de flautas, a mescla instrumental de Jo Yeong-wook injeta doses de adrenalina e endorfina, transitando como um maestro pelas sequências de estresse e conforto. Tomando partida por meio da união entre imagem e som, RM, integrante do grupo BTS, não esconde ser obcecado por Decisão de Partir e traz as cenas de tirar o fôlego para o videoclipe da faixa Closer, parte do seu álbum Indigo.
Lançado no Festival de Cannes em Maio do ano passado, pleno mês das noivas, o longa mira no divórcio entre o tradicional gênero do romance e o Cinema para traçar uma forma inédita de arrebatar corações. Exibido em salas seletas, ele detém a melhor bilheteria de Park nos Estados Unidos e é o mais assistido pelo país na plataforma de streaming Mubi. No campo das premiações, Decisão de Partir esteve na lista da Palma de Ouro e conquistou o prêmio de Melhor Diretor na cidade francesa. Já no Globo de Ouro e no BAFTA, conseguiu vaga em Melhor Filme Estrangeiro, mas não levou para a casa e nem repetiu o feito no Oscar 2023.
A verdade é que Park Chan-wook continua sem o devido reconhecimento das academias e, com Decisão de Partir, a sensação que fica é a de que ele deseja ser levado pela água salgada junto de Jang Hae-joon e Song Seo-rae. Ao final, ninguém escapa da obsessão: cineasta, personagens e público parecem se tornarem obcecados por tudo aquilo que é intrínseco à obra. Imerso na profundidade de simbolismos pensados de maneira sagrada, Chan-wook deixa a porta aberta para questionamentos sobre o amor e, essencialmente, se ele algum dia ele repetirá tal dicotomia entre montanha e mar, uma simbiose que somente a sua Arte explica.