Vitor Evangelista
A onda dos filmes de gênero com baixo orçamento e bilheteria astronômica tomou fôlego no ano passado, com dois longas extremamente baratos e retorno inimaginável: It – A Coisa e Corra!, esse segundo inclusive ganhando o Oscar de Melhor Roteiro Original. A produtora estadunidense A24 apostou no formato e na mente perturbada do diretor Ari Aster para lançar às telonas a euforia de Hereditário.
Centrado no declínio de uma família americana de classe média alta, o longa passeia de forma angustiante pela loucura pessoal de cada uma das figuras do clã dos Graham. Annie (Toni Collette) é profissional de miniaturas, mãe de dois filhos recheados de ressentimento materno, atua num relacionamento frio e distante com o marido e leva um baque quando recebe a notícia da morte da mãe, Ellie, já demente e que passou os últimos dias vivendo sob seu teto.
O principal trunfo do roteiro e da direção de estreia de Aster foi a paciência para dar o devido gosto da atração para o espectador. É quase como se as reações fossem colocadas em banho-maria para o sabor ser extraído por completo, sabor esse que constantemente se torna amargo. Hereditário incomoda.
O diretor filma estaticamente os ambientes, quase como se o ponto de vista fosse uma das maquetes de Annie. A música acompanha a ação das personagens, a partir do momento que a figura do ocultismo cresce, o mesmo ocorre com a trilha. O terceiro ato ensurdece. O diretor também se demora ao adentrar a psique de suas figuras centrais.
Encontra-se em Annie uma personalidade oca e cavoucada, ao passo que Toni Collette aceita mais e mais o sobrenatural ao seu redor. O absurdo dos gritos e caras que a atriz veste para a caracterização da personagem carimbam o talento de Collette e pavimentam esta como uma das melhores atuações do ano até então. A produção não funcionaria tão bem sem a presença ímpar de sua personalidade central.
Passando para os filhos da família, Peter (Alex Wolff) trabalha muito bem no limiar da sanidade humana em meio a todos os ocorridos ao longo das mais de duas horas de filme. O pai, Steve (Gabriel Byrne), é a figura pé no chão do filme, sempre calculando as possíveis variáveis e falhando sempre na tentativa de acalmar o restante da casa.
O estrelato cai mesmo na sinistra figura de Charlie (Milly Shapiro), a caçula, que atua com os olhos frios e os estalares da boca, sempre cabisbaixa. Charlie representa o clássico ser afetado nas produções de terror conhecidas: a garotinha Regan de O Exorcista (1974) e a figura infantil do anticristo em A Profecia (1977) são exemplos do arquétipo.
Mesmo que seja Charlie quem abre as portas do oculto e convida o terror para dentro da casa, o roteiro de Ari Aster subverte expectativas e constrói uma atmosfera bem semelhante a construída em A Bruxa (2015), paciência é a palavra-chave aqui. Tomadas longas que sucedem sequências alucinantes executam a função da espera, da aceitação. Entretanto, no momento que a tensão chega, o diretor abre mão da subjetividade e explicita tudo que maquinava em sua mente obscura.
Com uma estética minimalista, Hereditário transita como uma farsa digna da era de ouro da Grécia, não atoa o personagem de Peter estuda Medeia nas cenas das aulas de Literatura. Ari Aster remonta os épicos ancestrais num formato atual, estiloso e cheio de vigor. O diretor opta por posicionar sua câmera não só no interior de ambientes quadrados e fechados, como também no âmago de suas personagens, cada qual perdendo a lucidez a sua maneira.
O longa peca, porém, na excessiva auto explicação. A certa altura, já tendo se explanado duas vezes, o roteiro faz uma curva em retrocesso e torna a verbalizar os motivos do sobrenatural se prostrar firma ali. Quiçá por exigência de estúdio, quiçá por perfeccionismo do diretor; a certeza que fica é que o longa se beneficiaria mais se melhor apostasse na subjetividade das ações de suas personagens. Digno de ser dissecado e reinterpretado, Hereditário assusta e firma Ari Aster como uma das promessas do terror que está sendo produzido em terras estadunidenses.
Um comentário em “Hereditário e a quebra de expectativa do terror”