Vitória Gomez
A Irlanda tem sido palco de produções interessantes e diversas. Longe dos conflitos amistosos e de uma bela ambientação folclórica, ou até da sensibilidade tocante de uma tal menina silenciosa, a ilha também abriga as Criaturas do Senhor e seus lados sombrios e humanos. Na obra, produzida pela oscarizada A24, a decisão de uma mãe entre proteger seu filho ou deixá-lo aceitar as consequências de suas próprias ações norteiam um dilema sem volta, capaz de alterar a trajetória da cidade inteira e de um patriarcado atemporal.
Estrelado pelos indicados ao Oscar Emily Watson e Paul Mescal, o filme demora a mostrar a que veio. Brian (Mescal) retorna ao lar, uma ilha não nomeada da Irlanda, depois de anos morando na Austrália. Sua partida é um mistério e seu retorno, mais ainda. Mesmo assim, o homem, na casa dos seus vinte e tantos anos, é bem recebido pela irmã Erin (Toni O’Rourke) e principalmente pela mãe, Aileen (Watson). O menino de ouro da mulher, porém, não é bem como ela o vê e, ao longo dos 100 minutos, se revela.
Se a recepção do filho caçula é amarga pelo pai, interpretado por Declan Conlon, isso pouco importa diante da felicidade da mãe em reencontrá-lo. Para ela, o motivo pelo qual ele se foi é irrelevante, assomo como o porquê de ter voltado – ele está em casa. Ainda assim, a desconfiança prevalece, já que Brian supostamente retornou ao lar apenas para trabalhar na plantação de ostras do avô, Paddy, uma atividade à princípio monótona demais para segurar um jovem em uma cidade pacata. Com o patriarca em terceira geração já sem condições de saúde para tocar o negócio, a família assume a empresa.
Empresa essa que parece pautar o dia a dia de grande parte dos moradores da ilha. O local gira em torno do trabalho: enquanto os homens se dedicam à plantação e à pesca, as mulheres recebem, limpam, separam e comercializam as ostras. A divisão de tarefas é clara e sem mistérios, assim como a relação entre os gêneros nos âmbitos doméstico e social, mas a comunidade se mantém unida, próxima e sem questionar, como tipicamente acontece em locais pouco povoados.
O retorno de Brian é o que vira a maré. O bom moço se revela não tão bom assim. Como seu pai e avô faziam antes dele, o personagem de Mescal usa as madrugadas para a pesca ilegal e a natureza parece notar o desequilíbrio: as ostras retornam mofadas, inúteis para serem vendidas, e os trabalhadores são liberados até segunda ordem. A unidade local pouco se abala e God’s Creatures (no original) soa tão maçante quanto a vida na ilha irlandesa.
Na direção, Anna Rose Holmer e Saela Davis, veteranas de colaboração, reconhecem a dupla de trunfos que protagoniza a obra e se contentam com eles. Apoiada nas atuações, a condução de Criaturas do Senhor abraça um ritmo tão lento e fatigante quanto o cotidiano da comunidade. Ao contrário de aura de mistério que evoca a curiosidade em The Fits (drama dirigido por Holmer e co-roteirizado por Davis), a segunda parceria das cineastas só sai da apatia tarde, quando Aileen tem de escolher entre proteger o filho ou ver a justiça sendo feita.
Até então – e mesmo depois da longa uma hora até chegar ao ponto -, o que se destaca é o trabalho intenso de Mescal e Watson, juntamente com os departamentos de fotografia e som, que enriquecem a ambientação do longa e são os grandes responsáveis pela verdadeira aura tensa. Apesar da superficialidade inicial em adereçar as dúvidas que provoca, deixadas de lado até um longínquo terceiro ato, os cenários de solidão nos quais os personagens são filmados e a ferida em aberto que permeia a comunidade reforçam a desconfiança e a hostilidade.
Aqui, o roteiro escrito a quatro mãos por Fodhla Cronin O’Reilly e Shane Crowley pouco ajuda e dá o mínimo para os atores trabalharem: Brian é tão unidimensional que é difícil não julgá-lo como culpado, apesar de toda a cidade não vê-lo assim. A Paul Mescal fica a tarefa de enchê-lo de olhares vazios e choros desesperançosos, de quem abraça a realidade de um personagem fadado a indigno. Ao contrário de obras anteriores, em que pôde explorar as nuances das personalidades de seus papéis – desde um pai amoroso, mas ausente a um estudante apaixonado, mas sem rumo -, o irlandês conta com seu próprio repertório de profundidade para dar a Brian um retrato de desilusão e apatia que ecoa no vento e no silêncio da ilha.
Mais do que o galã da internet, Emily Watson é quem brilha. Na pele da mãe, a atriz usa a quietude do roteiro e a lentidão da direção para mostrar seus dilemas. Mesmo com a alarmante chegada do filho, o cotidiano local só é timidamente abalado quando ele é acusado de estuprar Sarah (Aisling Franciosi), com quem já nutria uma relação anteriormente. Sem necessidade de discorrer a situação ou confirmar a culpa – uma escolha sábia da direção -, Aileen não hesita em fornecer o álibi para inocentar Brian, antes mesmo de saber pelo que ele era acusado.
Em diante, Criaturas do Senhor é todo de Watson: seus olhares perdidos são protagonistas e, suplicantes e cortantes, imploram ao filho que não tenha feito o que fez. Capitaneado pela interpretação inquietante e aflitiva da atriz, o processo de tomada de consciência engata o drama psicológico. Ela, uma mãe que tinha de escolher entre o sangue de seu sangue e o próprio senso de justiça e moral, passa a se mover de forma inerte na sociedade, como quem é apenas telespectadora do resultado das suas ações. Jogada aos cantos, habitando as arestas da câmera de Chayse Irvin, Aileen carrega o conflito em si.
Se a direção e o roteiro guardam as cartas nas mangas apenas para o final, a fotografia de Irvin não espera um segundo para mostrar a que veio. As lentes do cinegrafista é que fazem o trabalho simbólico, encarando os olhares desviados de Aileen e percebendo as sutilezas de um suspeito Brian desde o início. O carisma negativo do moço é amenizado com os focos atenciosos da câmera, como em momentos em que interage com o avô doente. Aliado às imagens, o departamento de som escala a tensão e as nuances da narrativa nos uivos do vento, nas ondas do mar e nos ruídos das ostras batendo umas contras as outras em um galpão sem vida. À beira mar, as Criaturas do Senhor estão imersas nos silêncio e no barulho de si mesmas.
Ainda que inicialmente possa parecer sem rumo, Criaturas do Senhor apresenta um estudo de personagens conflituosos e humanos em seus contextos sociais. Para além disso, estuda os sentimentos mais íntimos e até sombrios de uma mãe em proteção ao seu filho. Até que ponto Aileen iria para defendê-lo? De outro lado, até que ponto iria para fazer da própria consciência um lugar mais tranquilo e habitável, depois da sua decisão?
Como produção da A24 – atualmente, um selo impossível de ser ignorado e majoritariamente sinônimo de unicidade e visão autoral – , o longa-metragem, porém, faz menos do que pode: ao invés de aproveitar a liberdade criativa concedida pela distribuidora e as interpretações ferozes e profundas de suas estrelas independentes, as criaturas só fazem o seu melhor nas situações em que são colocadas. Por fim, com Brian aceitando seu destino e Aileen dividida entre seguir a vida e reparar suas escolhas, quem cresce é Sarah, isolada e deixada de fora. Se Criaturas do Senhor morre na praia, a moça, assim como o telespectador, dirige para longe ao som de trilhas mais positivas. Afinal, “somos todos Criaturas do Senhor”.