Enrico Souto
A conjuntura instável e precária que refugiados no mundo todo se encontram nunca foi tão grave. São um dos grupos mais vulneráveis socialmente, agrupando pais e mães que se sujeitam aos trabalhos mais ímpios para sustentar suas famílias, e uma juventude que não vê perspectiva de um crescimento saudável. Nesse contexto, qual o papel que o esporte exerce? O futebol pode adquirir uma função transformadora e emancipatória para essas pessoas? Questões importantíssimas, mas que nunca são tratadas com a devida atenção por Capitães de Zaatari, documentário egípcio que é exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
O cenário mostrado é Zaatari, o maior campo de refugiados da Guerra da Síria, localizado na Jordânia. Circunstância essa que teria de tudo para esmagar as aspirações de qualquer um, mas não para Fawzi e Mahmoud. Os dois garotos, apaixonados por futebol, vêem no esporte uma possibilidade de transformação em suas vidas e na de suas famílias. E esse sonho parece bater-lhes à porta quando uma academia de futebol vai até Zaatari para selecionar jovens jogadores para um torneio internacional em Doha, no Catar, que pode finalmente conceder aos amigos a oportunidade que eles precisavam para emergir no esporte profissionalmente.
Captains of Za`atari, como é chamado originalmente, acompanha essencialmente esses dois núcleos: o campo de refugiados e a competição no Catar. O retrato feito de Zaatari segue o cotidiano daquele povo e, assim, os presenciamos travando suas lutas diárias. Vemos o pai de Fawzi, que já não está em sua melhor condição de saúde, sendo impedido de trabalhar fora do assentamento, impossibilitado de ver os seus filhos. Também nos deparamos com as insalubridades do local, as casas mal alocadas, as ruas não asfaltadas e o acesso precário a energia elétrica e internet. Na ansiedade de superar aquele lugar, os garotos decidem sacrificar seus estudos em prol dos treinos, apostando todas as poucas fichas que têm no futebol.
São nessas situações de extrema fragilidade emocional que vemos Capitães de Zaatari alcançar seu ápice. E, se há algo para ser elogiado no filme de estreia de Ali El Arabi na direção, é como ele retrata a visceralidade do relacionamento de Fawzi e Mahmoud. Sentimos junto a eles a alegria de pisar em um gramado pela primeira vez, e a amargura de ser negado a participar de uma competição que almejava por questões além de seu controle. É esse atrito constante entre conquistas e frustrações que dá o tom do documentário, traduzindo essa sensação agridoce de maneira encantadora.
Um dos pontos fortes nessa primeira metade do longa é a fotografia de Mahmoud Bashir. Optando por um esquema de câmera na mão, seus enquadramentos nunca se fixam. Sempre há algum tipo de perturbação, que tira sua visão cômoda do lugar comum. E esse método ganha um potencial ainda maior quando utilizado para capturar as partidas de futebol. A primeira sequência de bola em Zaatari é excepcional. Bashir cria uma sensação de quase claustrofobia, procurando alguma brecha sobre o campo rodeado pelos 22 meninos, comunicando, também visualmente, a inquietação de Fawzi e Mahmoud em deixar o acampamento para trás.
Contudo, o filme começa a enfraquecer assim que somos transportados para o núcleo de Doha. Essa inventividade que foi demonstrada no campo de areia de Zaatari se perde quando é levada para os gramados sintéticos. Pelas limitações de se registrar um torneio, que não concedem a liberdade de movimento de um jogo informal, a câmera se fixa e afasta-se da ação e adrenalina do jogo. A montagem de Menna El Shishini, na tentativa de dinamizar esses takes, passa a trabalhar com slow motion. No entanto, nesse caso, o efeito apenas evidencia o empobrecimento dos registros.
Da mesma forma, o núcleo emocional acaba por se dispersar. Na segunda metade de Capitães de Zaatari, passam a ser priorizadas questões com relevância mínima, como o resultado de um jogo ou o desempenho objetivo na competição, e deixa a amizade dos meninos e a perspectiva da população de Zaatari de escanteio. A discussão complexa a respeito da exclusão e negligência sobre jovens refugiados é esquecida, para focar em discursos motivacionais vazios, que ganham validação por serem protagonizados por grandes nomes do futebol: no caso, Xavi e Trezeguet. Nesses instantes, o filme parece menos um documentário e mais um comercial da FIFA.
Independente disso, Capitães de Zaatari exala uma paixão pujante pelo futebol e, mesmo em seus piores momentos, a direção de Ali nunca deixa isso entrar em questionamento. Porém, o seu primeiro longa-metragem perde o impacto que lhe demandava quando não se arrisca e decide manter seu tema central na superficialidade, nunca se aprofundando na raiz da problemática que ele relata. Um projeto com potencial gigantesco, mas que se perde em sua falta de ambição.