Bianca Penteado
O silêncio absoluto. As respirações baixas. Os movimentos lentos. O súbito toque de telefone.
Todos os amantes do terror já contemplaram essa cena. Desde O Chamado (2002), com a Samara prenunciando sua morte em ‘sete dias’, passando por Pânico (1996), que sabe muito bem como nos arrepiar com o vagaroso e intenso ‘hello, Sidney’. E, finalmente, a corrida genérica pela busca do aparelho enquanto alguém o persegue. Convenhamos, as ligações no terror já decaíram ao título de clichê. Porém, sempre existindo a exceção, vamos concordar em discordar de Call (2020).
O foco inicial da trama concentra-se na mudança de Seo Yeon (Park Shin Hye) para a casa em que um dia planejou morar com seus pais. Sem o celular, tem em um telefone fixo velho sua única comunicação. Um dia, ele toca. Desesperada, a voz do outro lado da linha grita e pede por ajuda. Porém, a jovem imediatamente desliga ao assustar-se com um detalhe: o endereço que a voz havia passado era idêntico ao seu.
A frequência da situação a perturba, e Seo Yeon começa a buscar por respostas. Com um pouco de pesquisa e muita crença – porque acreditar em algo assim requer esforço –, descobre que a voz no aparelho é de Young Sook (Jeon Jong Seo), uma garota que vive na mesma casa, só que 20 anos atrás. Com a mesma idade, mas com personalidades completamente opostas, elas compartilham a solidão, e é isso que as une.
Debutando de maneira exemplar na cinematografia de longas-metragens, Lee Chung Hyung, roteirista e diretor do thriller sul-coreano, reacende os debates sobre o gênero do horror no cinema estrangeiro. Trabalhando com as marcas que a vida deixa e que, boas ou ruins, nos tornam quem somos, o filme explora o efeito borboleta para concretizar o terror. Afinal, o quão perigoso é alguém que pode adicionar novas marcas ao seu passado e, consequentemente, moldar seu presente conforme as próprias vontades?
Imprevisível para o gênero, a trama abre espaço para contemplarmos a essência da dupla principal. Sem perder seu propósito em uma banal overdose de jumpscares, a narrativa é capaz de destacar a atuação impecável de seus componentes. A tristeza, o medo, a angústia e o desprezo de cada olhar. O diretor aposta em uma filmagem que evidencia as expressões de cada intérprete.
Com a falta do sobrenatural – o fantasma, o monstro ou a menina que desce as escadas de costas – a produção cativa o público pelo elenco. Ainda mais quando levamos em conta que o cinema coreano, finalmente, está proporcionando visibilidade para um enredo conduzido por mulheres fortes.
Park Shin Hye, conhecida como uma das melhores atrizes sul-coreanas de sua geração, não deixa a desejar. Mas, quem rouba a cena é Jong Seo, que, ao longo dos minutos, parece não se contentar com nada menos que o protagonismo. Entre balas de goma e extintores, encontra-se em Young Sook uma personalidade propositalmente inconstante. A mescla de risos infantis e olhares cruéis que a atriz usa para caracterizar a personagem problemática reafirmam seu talento e marcam um grande passo rumo ao estrelato.
Durante o filme, Chung Hyung mostra que a carta na manga de Call é a sua atenção nos impactos imediatos que o passado tem no presente. E essa carta é um trunfo. Imprescindível para um enredo com constantes transições de realidade, a equipe de iluminação e a produção foram fundamentais. Meticulosamente moldando ambientações e realçando a atmosfera antagônica de cada cenário, a direção e os – surpreendentes – efeitos especiais empenhados são dignos das telonas.
Ainda assim, há um critério conflituoso. A casualidade com que Seo Yeon aceita e acredita na situação temporal das ligações causa certa aversão. Ao mesmo tempo, estamos exaustos da auto explicação. Na obra aqui dissecada, não sabemos por que as coisas acontecem – chame de destino, se quiser. E, simultaneamente, não nos interessa o porquê de, a princípio, terem acontecido. Passado o desconforto momentâneo de que as coisas aconteceram fáceis demais, o roteiro segue progressivamente evoluindo, sem deixar solta qualquer ponta relevante para o enredo.
Baseado na obra The Caller (2011) de Matther Parkhill, o longa é merecedor de estar entre os melhores suspenses de 2020. Exercitando a nossa quebra de expectativa, a história toma caminhos inesperados até o último minuto. A Ligação (como é traduzido ao português) nos conduz a ambientes bizarros, tensos e sanguinários, criados com a sensatez necessária para produzir uma atmosfera de imersão e arrancá-lo da curva dos clichês.