Vitória Silva
Não é fácil inovar no âmbito das sitcoms. O gênero, que é uma abreviação para situation comedy (comédia de situação), se propõe a trazer um tom cômico para situações de um cotidiano qualquer, seja com um grupo de amigos, uma família ou no meio profissional. Sem um roteiro emocionante com reviravoltas bem trabalhadas, se sustentar apenas nesse princípio é um grande desafio. Não à toa, poucas são as séries que conseguem manter o nível de qualidade ao longo de suas temporadas, que, normalmente, são muitas.
Desde seu início em 2013, Brooklyn Nine-Nine utiliza das relações pessoais entre seus personagens principais para ter um desenvolvimento narrativo além das questões do trabalho, a fim de não se estabelecer uma mesmice rotineira. Isso é observado na construção de arcos como a evolução do relacionamento entre Amy (Melissa Fumero) e Jake (Andy Samberg), a estranha relação entre Gina (Chelsea Peretti) e Charles (Joe Lo Truglio), e as descobertas pessoais de Rosa (Stephanie Beatriz). No entanto, a sexta temporada pecou ao manter uma trama que rondava apenas os conflitos policiais, com a vida pessoal do squad beirando a superficialidade.
Ao perceber as reações dos fãs, o próprio produtor e criador Dan Goor prometeu que o sétimo ano da série traria mais momentos românticos. Como o esperado, a nova leva de episódios foca quase que inteiramente na relação do casal Peraltiago, que decide ter um filho juntos. No desenrolar desse arco, conseguimos ver um lado mais pessoal de Amy, com a frustração de que, nem sempre, o melhor dos seus planejamentos acaba dando certo. Assim como um amadurecimento de Jake Peralta, que passa por um conflito pessoal pelo medo de se tornar pai.
Em paralelo, temos Raymond (Andre Braugher) sendo rebaixado para fazer patrulha nas ruas, punição dada por Wuntch (Kyra Sedgwick) no final da temporada anterior. A mudança de cargos altera um pouco a dinâmica da série, e podemos ver um capitão mais descontraído e debochado, mas sem perder o tom sério e nada emocional que dá unicidade ao seu personagem. Esse seu “novo” estilo também abre espaço para tiradas que ajudam a suprir um pouco a falta da icônica Gina Linetti.
Andre Braugher não precisa se esforçar muito para ser um capitão Holt excepcional. O carisma do personagem, somado a suas colocações certeiras, dão um ar totalmente diferente para a comicidade. A sua nova personalidade ainda o ajudou a ganhar uma indicação ao Emmy 2020, que já é a sua quarta na categoria Melhor Ator Coadjuvante em Série de Comédia. Ele disputa com outros grandes nomes em potencial, como Mahershala Ali (Ramy) e Dan Levy (Schitt’s Creek).
Brooklyn Nine-Nine foi, mais uma vez, esquecida nas outras categorias principais de Comédia. A produção recebeu apenas uma nomeação técnica de Melhor Coordenação de Acrobacias, da qual já foi vencedora duas vezes. Por outro lado, seu produtor-executivo Michael Schur, que carrega um histórico azarado na Academia de TV, somou três indicações pela temporada final de sua outra produção, The Good Place.
Com a saída de Gina, Hitchcock (Dirk Blocker) e Scully (Joel McKinnon) passaram a ganhar mais espaço na série, entrando até na vinheta de abertura. Essa participação passa a ser mais notória, mesmo que na maioria das vezes eles ainda apareçam apenas para mostrar como são preguiçosos ou fazerem os comentários de sempre sobre comida, uma marca que já passou da hora de mudar. De forma um tanto surpreendente, ambos acabam tendo um papel especial na season finale, durante o parto de Amy Santiago.
Nas entrelinhas, a grande temática do novo ano de Brooklyn Nine-Nine é sobre laços paternais. Podemos observar isso não só na tentativa de Jake e Amy engravidarem, mas também nas preocupações de Terry (Terry Crews) e Charles em fazerem de tudo para agradar seus respectivos filhos e serem pais mais presentes. Essa nova preocupação entre os detetives mostra um amadurecimento do grupo, que começa a tomar decisões mais responsáveis e voltadas para a sua família. Boa parte dessa evolução é vista com Peralta, que até lida com mais seriedade sobre os seus próprios problemas parentais, num episódio que conta com a participação de Martin Mull, no papel de avô do Jake.
No âmbito das colaborações, a série repete algumas figurinhas carimbadas: Doug Judy (Craig Robinson) e Adrian Pimento (Jason Mantzoukas) contribuem para a narrativa mais uma vez. Mas novos rostos ainda são apresentados, como a ingênua Debbie, interpretada pela comediante Vanessa Bayer, que rende uma reviravolta hilária e poderia facilmente se tornar uma personagem do elenco fixo. O premiado J.K. Simmons, que repetiu a parceria com Andy Samberg em Palm Springs, também faz uma pontinha na trama, incorporando o (melhor) detetive Dillman.
Desde o seu início, a comédia se propõe a retratar uma delegacia às avessas, com uma rotina de acontecimentos cômicos e irreais no dia-a-dia dos detetives. Mesmo que já tenha integrado à sua narrativa algumas discussões importantes, criticar a instituição policial nunca foi o grande foco. Vemos isso apenas em alguns momentos de temporadas anteriores, como na representação de atitudes corruptas nos personagens O Abutre (Dean Winters) e o comissário Kelly (Phil Reeves), e a irresponsabilidade de altos cargos no capitão C.J. (Ken Marino).
Com o cenário atual, em que diversos protestos aconteceram ao redor do mundo em decorrência de casos de brutalidade de policiais com pessoas negras, especialmente nos Estados Unidos, a série se encontrou em um momento delicado. A oitava temporada teve seus roteiros descartados, e a produção decidiu realizar mudanças radicais no destino dos episódios, para abranger a realidade policial e suas problemáticas. Uma atitude dessas entrega uma grande responsabilidade para Brooklyn Nine-Nine, que já provou que consegue trazer assuntos sérios para sua narrativa com êxito, como visto no emocionante episódio Moo Moo, que relata um caso de racismo sofrido pelo tenente Jeffords.
A ideia de ambientar uma sitcom numa delegacia policial é, de início, promissora e não muito complicada. Afinal, criar um roteiro engraçado com detetives atrapalhados desvendando crimes não parece ser um grande desafio, mas não é o suficiente. É preciso também mostrar ao público as motivações de seus personagens e a relação com a vida pessoal de cada um. E Brooklyn Nine-Nine parece ter entendido isso.
O equilíbrio entre sarcasmo e piadas bobas, misturado com referências à cultura pop e silêncios constrangedores, é o que caracteriza a produção da NBC até então. Unir a essa balança um tom mais crítico em relação à temática policial, e personagens cada vez mais desenvolvidos, pode ser o que ajude a série a se consagrar como uma das grandes comédias da atualidade. O fim da 99ª delegacia do Brooklyn não parece estar próximo.