One Day at a Time: Duas culturas. Una familia.

(Foto: Reprodução)

Maria Carolina Gonzales e Lara Ignezli

No dia 8 de fevereiro, a Netflix finalmente lançou no seu catálogo a terceira temporada de One Day at a Time, após uma intensa mobilização dos fãs e dos produtores nas redes sociais para que a série fosse renovada. A trama se concentra na rotina dos Alvarez, uma família americana de origem cubana que vive em Los Angeles. É protagonizada por Justina Machado no papel de Penelope, uma veterana do exército que vive com seus dois filhos adolescentes e sua mãe, algumas vezes até com o intrometido senhorio do prédio onde moram.

O produtor Norman Lear (conhecido por trabalhos como All in the Family e The Jeffersons) desenvolveu a série original e está no comando do remake junto com Mike Royce e Gloria Calderón Kellett. A série é inspirada na produção homônima de 1975. O que poderia ser apenas mais uma comédia entre família assinada pela Netflix, se mostra um show de extrema importância nos tempos atuais.

Imigração, feminismo, religião, homofobia, saúde mental, alcoolismo e porte de arma dariam um belo plot de um drama pesado. Acredite ou não, esta série apresenta tudo isso de forma que as vezes o público nem perceba que está aprendendo, sempre com muito humor e sensibilidade. Enquanto alguns ainda insistem de que o mundo está chato porque não dá para fazer piada sem ofender alguém, One Day at a Time agora tem três temporadas para provar o contrário.

E é interessante observar como esse conteúdo pesado não condiz com o formato do produto. Como uma sitcom, escrita para toda a família assistir junta, consegue abordar temas tão controversos? A produção é o que torna a obra tão genuína.

A própria criadora é uma mulher latina que viveu na pele grande parte dos problemas que a protagonista enfrenta, e por isso busca sempre trazer para a sala de roteiristas representantes das minorias que quer retratar. Além de toda a impecabilidade na frente das câmeras, One Day at a Time é genuinamente especial por ser escrita e produzida por seus próprios personagens da vida real.

Atenção: o texto abaixo contém spoilers da série, leia por sua conta e risco!

Da esquerda para direita: Lydia, Dr. Berkowitz (acima), Alex, Elena (centro), Penelope e Schneider (acima). (Foto: Reprodução)

A maior estrela de Cuba

Lydia Margarita del Carmen Inclan Maribona Leytevidal de Riera. Mãe de Penelope e avó (abuelita) de Elena e Alex. É o coração da família Alvarez, até mesmo para aqueles que não são de sangue, como Schneider e Dr. Berkowitz. Dona das melhores tiradas da série e também dos grandes momentos de drama, essa cubana fervorosa é interpretada pelo maior nome do elenco de One Day at a Time: Rita Moreno. A lendária estrela até dispensa algumas apresentações, mas claro que não vamos deixá-la passar em branco.

Lydia foi levada para os Estados Unidos com outras crianças para fugir do regime de Fidel Castro em Cuba. Ainda na adolescência, teve que abandonar seus pais e sua irmã mais velha, além de se tornar responsável pelos irmãos mais novos. Lydia chegou sem falar inglês e sentiu na pele o que é ser uma mulher latina em solo americano. Mesmo com todas as dificuldades, ela fez dos EUA sua nova casa e construiu uma família com seu falecido marido Berto, também cubano. Ela jamais considerou esconder suas raízes cubanas e sempre fala com muito carinho e nostalgia do país, até quando precisou se tornar uma cidadã americana de forma legal.

Lydia e Berto criaram seus filhos nos padrões de uma família tradicional latina. Ela é uma católica devota (a ponto de espalhar fotos do Papa pela casa) e tenta passar essa fé para a família, principalmente para Penelope, ainda que houvesse discordâncias sobre o assunto. Quando se mudou para o apartamento da filha, Lydia ajudou a criar os netos Elena e Alex e até acabou fazendo mais pela casa, como ser responsável pelas compras e preparar as refeições.

Essa convivência é extremamente saudável, mas em alguns momentos é inevitável que ocorra conflitos entre essas três gerações que dividem o mesmo espaço. Lydia é firme na ideia de que Penelope precisa de um homem para estar completa (se baseando no próprio casamento com Berto, por quem ela ainda é apaixonada), mas também faz questão protegê-la de qualquer relacionamento perigoso, como foi com seu ex-genro Victor.

O coração gigante da abuelita a torna uma personagem apaixonante, talvez até pela identificação com nossas próprias avós na cultura latina. Toda vez que abre as cortinas do seu quarto, a personagem de Rita Moreno recebe aplausos e gritos calorosos da plateia, e a gente entende o porquê.

A vida de Lydia Riera poderia ser facilmente confundida com a de Rita Moreno. Uma das condições para que a atriz fizesse o papel da abuelita era manter a sua sensualidade, que foi uma marca durante a carreira. Ambas são grandes estrelas latinas que fizeram sua fama nos Estados Unidos, em tempos ainda mais conservadores que atualmente, e carregam uma história de sucesso que vem com algumas dores do passado.

Porto Rico, 1931

Nasce uma estrela. Apesar da queridíssima Lydia ser cubana, Rita Moreno é na verdade porto riquenha. A atriz é natural de Humacao, cidade da costa leste de Porto Rico, onde nasceu na década de 30 com o nome Rosita Dolores Alverío. A estadia no país de origem durou pouco, e Rosita se mudou para Nova York com a mãe quando tinha apenas cinco anos. E foi aí, em 1936, que a terra do tio Sam abria as portas para um legado latino — mesmo sem saber ainda.

A carreira de Rita se iniciou aos 11 anos, quando começou a dublar filmes estadunidenses em espanhol. Aos 13 estreou nos palcos da Broadway. Aos 21 fez uma participação em nada mais, nada menos que Singin’ in the rain.

Mas foi exatamente aos 30 que se consolidou, quando deu vida à Anita em West Side Story. O musical lhe rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante e foi o primeiro passo para completar os quatro prêmios mais importantes da indústria: Rita ganhou um Oscar por West Side Story (1961), um Grammy por Electric Company (1973) um Tony por The Ritz (1975) e dois Emmys por The Rockford Files (1974) e por The Muppet Show (1976).

Nossa querida abuelita foi a terceira pessoa da História a ganhar um Oscar, um Grammy, um Emmy e um Tony (até hoje só 6 mulheres conseguiram o feito). E assim, muito antes do governo estadunidense sequer sonhar em construir muros, a cultura latina era enraizada na história do país, tendo como principal representante uma mulher: Rita Moreno.

Legenda: Rita maravilhosa com seu Oscar Foto: Bettmann Archive/Getty Images

Enquanto abria portas no ramo profissional e inovava todas as áreas possíveis e imagináveis, Rita levava uma vida pessoal bastante conturbada. O grande amor da vida de Rita, segundo a mesma, foi Marlon Brando — sim, o ator que estuprou Maria Schneider enquanto filmavam uma cena para O último tango em Paris (1972) — com quem manteve um relacionamento abusivo por oito anos.

O casal passou por brigas mais leves, como a vez que Rita saiu com Elvis Presley para deixá-lo com ciúmes (o que fez com que o ator arremessasse cadeiras durante a briga), e por situações extremamente pesadas que só foram reveladas recentemente.

Em sua autobiografia Rita Moreno: a memoir (2014) a atriz conta que Brando a obrigou a realizar um aborto, o que acarretou uma depressão profunda. Um dia, durante esse período sombrio, Moreno encontrou os remédios usados pelo namorado para dormir e realizou uma tentativa de suicídio. A assistente de Marlon a encontrou no chão do banheiro e lhe salvou a vida.

Quem poderia imaginar que a abuelita tinha na bagagem uma carreira tão sólida, que já dura 76 anos, e episódios pessoais como usar o Elvis Presley pra fazer ciúme pra alguém? É, é isso mesmo que você entendeu. A Rita é mais uma coisa que eles introduzem ao público de forma corriqueira e natural, mas na verdade é importantíssima. Um easter egg de 87 anos, que se reinventa artisticamente há 7 décadas para abordar assuntos contemporâneos de maneira magistral.

Total badass

Filha e mãe. As grandes estrelas da série (Foto: Reprodução)

Penelope Alvarez (ou Lupita) é a chefe da família. Mãe solteira de dois adolescentes, veterana do Exército dos Estados Unidos, trabalhando como enfermeira em um consultório médico enquanto estuda para se tornar uma Enfermeira Clínica. Tudo isso ainda é pouco para descrever Penelope.

Recentemente, a ficção vem trazendo uma leva de super mães, aquelas que não ficam apenas no plano de uma figura materna estereotipada (como Lorelai Gilmore, personagem de Lauren Graham em Gilmore Girls). Penelope é uma personagem que tem sua história aprofundada e também busca uma vida pessoal e romântica, que não se limita às paredes de sua casa. E é aí que a gente entende o porquê ela é a protagonista.

No começo da série, conhecemos uma mãe super protetora, sempre colocando os problemas dos filhos a frente dos seus, buscando provar para si mesma – e também para a sua mãe, Lydia – que consegue criá-los sozinha sem a ajuda de seu ex-marido, Victor. Porém, a medida em que a série vai evoluíndo, a personagem vai crescendo junto, e ela mostra que ser mãe é apenas uma das suas diversas camadas.

A partir da segunda temporada, Lupita entra naquela que seria sua maior batalha: o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (quadro muito comum em veteranos de guerra), levando a um quadro de ansiedade e depressão. Nesse momento, esta série de comédia nos faz chorar (se já não choramos antes), e até se identificar com uma pessoa no seu maior momento de vulnerabilidade. Ouso até dizer que One Day at a Time conseguiu retratar o que é a depressão e o que é a ansiedade com uma sensibilidade que nenhuma outra série fez.

Latinx

Elena Alvarez é a filha mais velha de Penelope e Victor. Ela é um clichê adolescente das séries atuais: feminista, engajada socialmente, atenta às questões de gênero e forte ativista. A personagem de Isabella Gomez é um ponto forte nessa trama de conflitos geracionais, principalmente na relação com sua avó, Lydia. Enquanto Elena tem fácil acesso a qualquer informação, possibilitando seu questionamento sobre tudo, Lydia reproduz o costumes conservadores que foram ensinados para ela antigamente – e a gente compreende totalmente, a ponto de achar que a garota implica demais com a abuelita.

O ápice para Elena na série foi a descoberta e aceitação da sua sexualidade. Ela começa um breve relacionamento com um colega de classe que é seu par para a valsa da sua festa de 15 anos (quinceañera), mas ela percebe que não consegue  sentir atração por ele ou por qualquer outro homem. Assim que Elena se assume lésbica para a família Penelope se sente desconfortável e até um pouco decepcionada no começo. Logo ela entende que o amor pela filha é maior e que é fundamental protegê-la da intolerância que poderia sofrer. O problema mesmo seria se assumir para sua avó.

Mas sabemos que Lydia não é como qualquer outra abuela. A reação dela ao momento em que Elena se assume é de longe uma das cenas mais surpreendentes de One Day at a Time e merece todos os aplausos do público.

Apesar do apoio em casa, Elena sofreu muito com a rejeição de seu pai, Victor, que chegou a abandonar a filha durante a valsa em sua festa ao vê-la usando um terno em vez do vestido de debutante. Mesmo assim, ela e toda a família enfrenta o pai, abordando questões até mais profundas do que sua sexualidade, como o fato dele ter perdido a transição da infância para a adolescência da filha. Victor tenta ao máximo se aproximar da filha na nova temporada, e isso faz com que ele deixe de lado muitos preconceitos. Elena vai cedendo a aproximação e conseguiu a dança que merecia, mas ela ainda tem o desafio de lutar com as mágoas provocadas pelo pai.

Pobrecito men

Victor, o ex-marido de Penelope, é o mais próximo de vilão que nos é apresentado. Enquanto o caçula, Alex, é um exemplo de como a masculinidade tóxica deve ser tratada, Victor é escrito como o contrário. É agressivo e orgulhoso. Deixa as próprias convicções acabar com o relacionamento com a filha recentemente assumida.

Tudo começou quando o casal serviu os Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Mas é como os dois reagem à experiência que faz com que ela assine o divórcio. Enquanto Penelope é uma pessoa forte e consciente, que busca apoio profissional para lidar com o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, Victor se recusa a procurar ajuda e recorre à bebida, e revela-se (além de todo o resto) alcóolatra.

E é depois de causar muitos problemas ao longo das temporadas que Victor finalmente se redime.

Na última temporada, além de recobrar a sobriedade, também anuncia que está noivo de Nicole — quem, inclusive, é interpretada pela criadora da série, Gloria Calderón Kellett —, uma mulher absurdamente parecida com Penelope e no dia de seu casamento surpreende Elena convidando-a para uma dança de pai e filha, depois de contar para toda a família (com orgulho) que a filha é assumidamente lésbica.

Dale, papito, dale!

Alex Alvarez, interpretado por Marcel Ruiz, é o filho mais novo de Penelope e o queridinho da abuelita. Ao longo das três temporadas acompanhamos a transformação do caçula e vimos como a família tem que se esforçar, em diversas situações, para livrá-lo das amarras da masculinidade tóxica sob a qual os homens são submetidos quando chegam na adolescência.

Dentro da história, papito (como é chamado carinhosamente) é o modelo de como os homens deveriam ser criados. Além de vaidoso —  e sem medo de assumir que é —, Alex é sensível e se mostra disponível toda vez que alguém precisa de sua ajuda. Mas, na terceira temporada, suas qualidades começam a ser mascaradas pelas atitudes de adolescente rebelde.

Logo no começo da temporada, a família percebe um comportamento problemático quanto ao jeito de tratar a namorada, Chloe, quando Alex posta uma foto fazendo piadinha com os seios da menina. A bronca é dada por Elena e por algum tempo Alex parece mais maduro. E então, alguns episódios depois, Penelope descobre que o filho é usuário de maconha e o castiga durante praticamente toda a temporada.

O castigo termina no episódio que é o ápice do amadurecimento do (nem tão) pequeno Alvarez. Além de ajudar a irmã a se recuperar de uma crise de ansiedade, Alex encontra Schnider bêbado na lavanderia do prédio e tem que, sozinho, descobrir como lidar com a situação. Em uma cena extremamente emocionante, que inverte os papéis dos dois personagens, Alex evolui para alguém conscientizado e responsável, enquanto Schinder se torna frágil e dependente.  

O quase Alvarez

Desde literalmente o primeiro episódio é bem claro o quanto Schnider quer ser um Alvarez. O dono do prédio é tratado como um filho pela abuelita, como uma figura paterna por Alex e como melhor amigo por Penelope. Schnider permanece em constante busca por aceitação, apesar de ser querido por todos.

Ele desempenha também o papel de branco privilegiado para antagonizar a posição social da família latina, que constantemente tem que lidar com preconceitos. Mas, apesar de soltar seus comentários levemente problemáticos, Schnider está sempre disposto a escutar e a aprender, mantendo sua personalidade extremamente agradável. E é por causa dessa personalidade que é tão difícil ver os acontecimentos da terceira temporada.

Depois de 8 anos de sobriedade, Schnider tem uma recaída durante a visita do pai e mostra como é o fundo do poço para um dependente químico. Indo de encontro com a evolução do resto dos personagens, o quase Alvarez mostra seu lado sombrio e agressivo.

E é aí que percebemos como ele é, e sempre foi, um verdadeiro Alvarez. Além da cena marcante com Alex, Penelope o enfrenta com lágrimas nos olhos e exige que ele lide com a situação da forma correta. É emocionante assistir à família colocando de lado os próprios problemas para ter a certeza de sua recuperação, dando carinho e apoio incondicionais até que ele se reerga.

Um dia de cada vez… Até que a quarta temporada seja confirmada

Assim como aconteceu na segunda temporada, a terceira termina com um final aberto, que permite várias interpretações, mas sem certeza da sua continuação. Ficamos na esperança. Mesmo após o desabafo de Gloria Calderón Kellet no começo de 2018, a campanha para a renovação de One Day at a Time continua. As visualizações são importantes para a Netflix continuar com o seriado, e um show tão importante quanto como este nem deveria estar passando por isso.

Sinceramente hein, Netflix?

Além de humor, drama, temas inteligentes e um cast pesadíssimo, One Day at a Time também traz um mistério: Por que a Netflix a odeia tanto? Enquanto a plataforma insiste em investir em séries que não tem nem um porquê — quanto mais treze — para continuar existindo, One Day at a Time é totalmente negligenciada e depende dos fãs para ganhar novas temporadas. E novas temporadas são necessárias.

Falando nisso, já viu One Day at a Time?

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