Mariana Nicastro e Vitória Vulcano
“Morte. Morte. Morte.” É o que você deve gritar se achar um corpo. O slasher do estúdio A24 aborda o reencontro de antigos amigos que decidem confraternizar em uma noite tempestuosa. Porém, o choque do presente estremece o grupo, que sempre se escondeu sob um véu de mistérios e mentiras. Então, o que seria melhor do que juntar álcool e drogas a um intenso jogo de Bodies Bodies Bodies – uma mistura de Cidade Dorme com Among Us da vida real – na companhia de um verdadeiro homicida?
Tudo começa com um assassino que será sorteado em segredo e terá que perseguir os demais participantes no escuro. Já os últimos caminham pela mansão em que estão e, caso se deparem com um corpo, devem bradar “Morte, morte, morte” para, então, acenderem as luzes e darem início a investigação do fictício crime. Quando a brincadeira perde lugar para o sangue e, de fato, óbitos, os jovens passam a se proteger do responsável trepidando no pânico instaurado.
Lançado no Brasil em outubro de 2022, – mais de um mês após a estreia mundial e vários dias de descaso na conta da distribuição nacional de produções do gênero – Bodies Bodies Bodies é dirigido por Halina Reijn, que já explorou a função no thriller psicológico Instinct (2019). Inspirada pela filmografia de John Cassavetes e pelos icônicos Heathers (1988), Quem Tem Medo de Virginia Woolf? e A Professora de Piano (2001), a holandesa abraçou o óbvio ao admitir que os infortúnios de sua trama precedem a Geração Z e todo o universo tecnológico permeado pelas redes sociais. Ainda assim, o trabalho desenvolvido pela cineasta, cutucando a complexidade dessa ferida em expansão, proporciona um salto construtivo no terreno que o novo “terrir” deseja adubar.
Semelhante à singularidade de Pânico (1996) nos anos 90, a obra se vale do subgênero mais subversivo do Horror para escrachar a superficialidade de seu grupo de protagonistas. A essência de cada jovem é sufocada pelas máscaras que assumem socialmente e, mesmo quando um assassino não espreita os corredores, o padrão se autocritica pelo cinismo e pela visceralidade. Todos estão presos na tal mansão sem necessidade, se repelindo emocionalmente na constância de seus vícios e tão perdidos em sua própria incredulidade que sequer se dão conta da babaquice coletiva reunida.
O roteiro avesso é responsabilidade da estreante Sarah DeLappe, que remodelou uma criação de Kristen Roupenian. A história original, propriamente slasher, também tinha sido projetada em um cenário de catástrofe natural – uma tempestade de neve. Com a adaptação para os cinemas, a trama foi ressignificada e, o que antes beberia de fontes diretas do subgênero, transformou-se em uma criativa sátira aos privilégios e angústias de adolescentes ricos, em uma corrompida Geração Z.
Incentivadas em doses cavalares, a revolta e a ansiedade viram guias pontuais no projeto. O texto propositalmente afiado faz a realidade bater bem nas nossas portas e não gostamos de nos identificar com ninguém retratado no banho de sangue. Não por recusarmos a verdade, mas porque todos em cena são tão niilistas quanto irritantes. Bodies Bodies Bodies reflete uma casca do que muito provavelmente somos, se não em todas as horas do dia, certamente nos períodos on-line: seres engajados, munidos de debates vazios e opiniões replicadas sobre tudo.
Com uma maioria de personagens estadunidenses, o filme brinca com uma festa realizada – literalmente – no olho de um furacão. Os amigos em questão não se unem por sobrevivência ou afeto, e seus diálogos são construídos entre o superficial e o insano. Como se retirada diretamente do Twitter, a trupe de Morte Morte Morte, no título traduzido, ama repetir expressões usadas e banalizadas no território midiático, ausentando os termos de contextos e sentidos que, algumas vezes, nem chegaram a existir. No saldo final, todos se esmagam entre si em um rito deliciosamente cômico, tentando reforçar suas personalidades depreciativas e deprimentes.
Alice, interpretada pela incansavelmente expressiva Rachel Sennott, é uma típica patricinha fútil e mimada que desconta suas frustrações em narcóticos e relacionamentos precipitados. O amigo David (Pete Davidson) vive no egocentrismo, inconsequente e cheio de si. Emma (Chase Sui Wonders) traz a faceta mais melodramática e emocionalmente dependente do time, enquanto Jordan (Myha’la Herrold) tem o pavio curto e parece disposta a deixar o recém casal Sophie (Amandla Stenberg) e Bee (Maria Bakalova) o mais desconfortável possível.
Curiosamente, Bee é a única estrangeira – de sangue e espírito – em Bodies Bodies Bodies, agindo como os olhos questionadores do público durante toda a tensão. Sua nacionalidade não entra em pauta nos conflitos e a visão “não classificatória” colabora para um sentimento coletivo que cresce ao longo do filme. Afinal, quem é essa garota?
Mesmo que a minuciosa coadjuvante de Bakalova seja apresentada como uma provável final girl, é Sophie quem carrega o mistério com as chaves de uma protagonista. Caminhando em uma interessante corda bamba moral, a garota recém-saída de uma clínica de reabilitação nunca revela seus verdadeiros anseios, segredos ou intenções. Já Greg (Lee Pace), o único adulto de verdade do grupo, tem a missão de sustentar o choque entre a jovialidade e seus públicos antecessores.
No ritmo do surgimento dos homicídios, o longa se matura como um whodunnit clássico, estilizado pelo caos das redes sociais. Quanto ao Terror propriamente dito: o gênero não é o foco principal da obra, mas dita as veias cômicas e críticas que sua direção decide assumir. Quanto mais carnificina, maior hostilidade preenche o ambiente – ao passo em que o mistério da história se alimenta do real horror aqui levantado. Tratando-se dos Estados Unidos, alguns temas implícitos, no ar e no suspense, são a posse descabida de armas, os perigos por trás das relações on-line, a alienação na realidade neoliberal e o uso ostensivo de álcool e drogas.
Bodies Bodies Bodies constantemente catapulta seu ato inicial pelo sabor da desconfiança. A brincadeira à la “detetive” não só dá corda ao filme, como também retorna cada vez que um novo corpo é adicionado à pilha. Quase todas as vítimas são assassinadas fora das câmeras, o que facilita o trabalho ardiloso e recorrente de cada personagem na vilanização do restante do grupo. Aos poucos, uma rede de culpa é formada quando todos têm seus instrumentos de defesa, mas deixam dezenas de rastros que os incriminam na força do ego.
Chegando no terceiro corte da trama, a seleta turma descarrila a si própria tão profundamente que a única escapatória se torna denunciar uns aos outros pelo sangue, ódio ou descaramento. O drama e a aversão, somados ao medo do desconhecido, movem os momentos mais impactantes em cena, como feito nos Jogos Mortais (2005) de James Wan. As ações falam pelos donos, e o puro suco do entretenimento está na ausência de monólogos complexos e rebuscados para consolidar o tribunal de pecados.
Assim como em Casamento Sangrento (2019), a produção tem o valor da perseguição de gato-e-rato nos pulmões, e em Bodies Bodies Bodies desencadeia um fluxo intenso, divertido e curioso. O fator também ganha atmosfera pela contundente sonoplastia elaborada por Disasterpeace, artista experimental que já trabalhou em Corrente do Mal (It Follows, 2014) e O Mistério de Silver Lake (2018).
Retirada diretamente das playlists dos atores do longa, a trilha sonora não perde fôlego e carrega gêneros eletrônicos do rap ao pop. A coletânea enfileira ShyGirl, Princess Nokia, Kilo Kish, Azealia Banks e Tommy Genesis, além de Charli XCX, que lançou Hot Girl como tema oficial do filme. Em uma estética identitária crescente, análoga ao universo de Euphoria (2019), o figurino e a fotografia de Morte Morte Morte introjetam cores neon e estilos de roupas ligados à geração atual.
Em contraste estudado, o filme ainda é pontual e sugestivamente escuro, tendo jogos de luzes desenvolvidos pelo próprio elenco durante as gravações. O processo foi coordenado pelo diretor de fotografia Jasper Wolf, que operou câmeras portáteis de movimentos inquietos e ágeis para ampliar o clima da carnificina. Frequentemente usada em composição fechada, a cinematografia acompanha as emoções à flor da pele e enriquece o trato de uma história que se desenrola em um único cenário.
De tempos em tempos, o Terror slasher reestrutura suas metas inversamente didáticas e estapeia – com bons baldes de sangue – as forças que regulam a moeda da moralidade. Morte Morte Morte não foge da inventividade e, nada confortável com o que o TikTok e a classe média ascendente têm evocado de pior no mundo, faz sua fama esfaqueando dos incitadores aos alvos da cultura do cancelamento. Consciência e incredulidade são o que falta na realidade da Gen Z e sobra para o elenco convincente e estrelado da trama, nomes alinhadíssimos à combustão de bons subtextos que o Horror rendeu em 2022.
O destaque no ano, como de costume, é delas. Keke Palmer, Mia Goth, Jenna Ortega, Anya Taylor Joy… estamos cercados e obcecados pelo brilhantismo das novas scream queens do pedaço. Engenhosas e transcendentais, as mulheres sabem o peso de dar vida às muitas maneiras de encenar o encontro com a morte. O quinteto de Halina Reijn, por sua vez, assume o humano e o brutal do papel sem titubear, e ainda tomando os números das bilheterias. Graças a elas, Bodies Bodies Bodies é a acidez que você espera, a violência morando dentro do seu celular e a sátira infinita ao fantasma da nossa futilidade.