Ayra Mori
Foi na Sétima Arte que Ingmar Bergman convidou seus fantasmas mais obscuros para uma batalha taciturna de xadrez. Numa série de movimentos milimetricamente calculados, xeque, o cineasta sueco ultrapassou os limites entre o homem ordinário e o gênio do Cinema Moderno. Integrando a Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Mia Hansen-Løve se aventura em Bergman Island. E incubando-se da ingrata responsabilidade de homenagear tamanho legado, a diretora francesa vai para além de Bergman, refletindo acerca do amor, da desilusão e, principalmente, da recuperação artística.
O longa toma espaço em Fårö, uma ilha Báltica revelada a Bergman no decurso das filmagens de Através de um Espelho, onde encontrou na paisagem idílica a materialização física de uma visão que sempre manteve consigo. Foi amor à primeira vista. Fårö tornou-se cenário de clássicos do cineasta, que vão desde A Paixão de Ana à Cenas de um Casamento, e nela, Bergman passou recluso os seus amargos últimos anos de vida.
Sem surpresa, a ilha sueca se tornou retiro temático para cinéfilos. Lá, Hansen-Løve introduz a narrativa com a chegada de um casal. Ambos cineastas, Tony (Tim Roth) e Chris (Vicky Krieps) fixam-se em Fårö, dando início à escrita de seus respectivos projetos futuros. Ele celebra os sucessos de sua estabelecida produção artística, reconhecida pelo público. Ela, através da experiência torturante que perpassa o processo criativo, luta contra a mediocridade do próprio roteiro. Assim, o casal lida com o impasse calado que navega por meio dos desalinhamentos profissionais de cada um. Tudo sob a vastidão do azul deslumbrante do mar, a herança de Bergman e as memórias do passado.
Conforme a escrita do casal avança, os rumos de ambos vão divergindo. Nos detalhes de uma conversa animada ou na indiferença de uma expedição turística cômica, para Chris, ao lado de Hansen-Løve, as reafirmações da figura do marido, assim como as de Bergman, não interessam. Ao contrário, envolvida pela beleza estonteante quase opressora da paisagem, ela mergulha de cabeça nas possibilidades que surgem a partir de sua insubordinação.
O roteiro de Chris ganha corpo, guiando o filme a uma narrativa de abismo que entrelaça diretora à protagonista à nova protagonista. Vida e Arte tornam-se uma e duas ficções se enredam quando Chris se espelha em Amy – interpretada excepcionalmente por Mia Wasikowska – para personificar os desejos frustrados do primeiro amor, Joseph (Anders Danielsen Lie). Esse é o último capítulo dessa história fadada à ruína que se deu ora muito cedo, ora tarde demais. A ânsia desse amor proibido é agonizante, inconclusiva. Hansen-Løve nos priva da catarse e a quietude gritante de Fårö parece amplificar as dores dos amantes desafortunados, bem como a nossa.
Na tranquilidade da paisagem, na melancolia torturante do adeus jamais dito ou ainda no êxtase de se dançar, o longa traça paralelos que unificam brilhantemente Bergman Island, Persona e The Winner Takes It All do ABBA; sugerindo que, talvez, essas três interpretações não sejam de todo opostas. Em outros termos, Bergman Island não é uma simples carta de amor. Nela, Hansen-Løve é a vencedora que leva tudo. Libertando-se das influências imateriais frígidas do cineasta sueco, a diretora francesa reafirma deliberadamente a própria voz, junto de Chris, junto de Amy.