O otimismo inabalável de Belle

Cena do filme animado Belle. Belle (Kaho Nakamura) é vista de perfil, olhando para a esquerda enquanto sorri e leva as mãos ao peito. Belle é uma mulher magra, asiática, de longos cabelos rosa-claros e grandes olhos azuis. Ela possui uma linha de sardas vermelhas embaixo dos olhos e maquiagem rosa nas bochechas, entrecortada por padrões retos e brancos. Em seus cabelos, flores vermelhas estão presas acima das orelhas e seu vestido também é recheado delas. Ao fundo, vemos outras flores de várias cores e luzes amarelas cintilando contra um fundo escuro.
Apesar de não ter sido selecionado para concorrer ao Oscar, Belle é um testamento ao poder da animação como meio (Foto: Studio Chizu)

Gabriel Oliveira F. Arruda

Por mais que seja tentador reduzir o mais recente filme do cineasta Mamoru Hosoda à uma reinterpretação moderna de A Bela e a Fera, esse simples elevator pitch não faz jus à complexidade temática e emocional da nova animação do Studio Chizu. Belle (Ryû to sobakasu no hime, no original em japonês) passa bem longe de ser uma “versão anime” do clássico francês e, ao invés disso, se utiliza da familiaridade de suas dinâmicas para contar sua própria história de amor transformativo na era das redes sociais e realidades virtuais, num semi-musical de escopo glorioso e, ao mesmo tempo, íntimo.

Com grande parte de sua música diegeticamente integrada ao longo de suas duas horas de duração, ela serve de eixo central para sua narrativa, e é a maneira com que sua protagonista, Suzu (Kaho Nakamura), interage e faz razão do mundo ao seu redor e de suas próprias emoções, expressas não com coreografias elaboradas, mas única e exclusivamente na cadência e no volume de sua voz. Seja na vida real ou no mundo virtual de U, onde ela assume o manto da diva pop Belle, Suzu honra o título ocidental da produção, que foca em sua jornada de amadurecimento pessoal, e não apenas na relação que ela constrói com a Fera (Takeru Satoh), o temível criminoso que assombra as planícies digitais.

Cena do filme animado Belle. Suzu (Kaho Nakamura) começa a entrar na realidade virtual. Em um plano próximo vemos a personagem de perfil, virada para a esquerda, de olhos fechados e usando um dispositivo futurista circular branco no ouvido, com um “U” estilizado em luz luminescente. Ao redor de Suzu, linhas circulares distorcem levemente a imagem, com uma luz dourada vindo do canto inferior esquerdo da tela e iluminando essas linhas. Suzu é uma jovem asiática de cabelos pretos que vão até os ombros.
O misto de animação 2D e 3D é uma maneira sagaz de diferenciar a vida real de seu mundo virtual (Foto: Studio Chizu)

Desde a primeira cena, Belle já diz a que veio: com uma abertura completamente de sons e cores vibrantes, somos introduzidos à U por meio da música homônima de Belle, que a canta nas costas de uma imensa baleia carregando dezenas de alto falantes. A visão de Hosoda e do resto dos animadores para o futuro é instantaneamente clara e marcante, se utilizando de formas sólidas e simples para construir um espaço minimalista recheado de personagens altamente detalhados e diversificados.

Apesar de tanto o espaço virtual quanto o real serem meticulosamente compostos de maneira a fornecer uma experiência cinematográfica singular, por vezes há uma falta de contexto que prejudica na interpretação do filme. Belle nos explica o funcionamento de U apenas brevemente, e mais tarde passa por cima de vários aspectos da construção desse espaço, esperando que as dinâmicas familiares sejam autoexplicativas. Se por um lado essas explicações vagas são parte deliberada da direção experiente de Hosoda, confiando na carga emocional das cenas para mover a história em frente, por outro há horas em que ficamos com a sensação de que seu roteiro não consegue acompanhar essas cargas o tempo todo, prejudicando o ritmo da obra.

Isso é especialmente evidente nos momentos em que os dois entram em sincronia, em que os arcos e motivações das personagens são claros e concisos e os visuais e sons se agigantam sobre nós, o efeito não é nada menos do que mágico. Todas as quatro músicas cantadas por Suzu ao longo da trama chegam no momento exato em que essa onda de emoção parece prestes a nos afogar, gritando aquilo que não poderia ser dito de nenhuma outra forma, através de composições monumentais e letras arrebatadoras, a maioria das quais escritas por Hosoda e Nakamura.

Assim como em trabalhos anteriores, Hosoda explora a emergência da web e das relações cultivadas à partir dela e, mesmo quando os temas não recebem o devido espaço para florescer em meio ao coming-of-age de sua protagonista, as ideias do roteiro e as subversões ao conto original são inventivas e instigantes o suficiente para suportar sua reinterpretação. Em U, a pior coisa que pode acontecer com um usuário é ele ser “revelado”, tendo seu Ás (avatar virtual) deletado e sua identidade exposta para o resto do mundo. É também o que Justin (Toshiyuki Morikawa), um dos autodenominados “justiceiros” dessa realidade e principal antagonista da heroína, ameaça fazer com a Fera caso a encontre. Enquanto na obra original o monstro ansiava por reverter sua condição e reencontrar sua humanidade, aqui o conflito de Suzu é definido pela ambiguidade de sua condição, uma celebridade anônima, conhecida apenas através do Ás de Belle.

Um dos principais e mais bem desenvolvidos questionamentos do roteiro está no papel do anonimato no ambiente virtual: se por um lado ela nos dá carta branca para agirmos com crueldade uns com os outros, protegidos por máscaras arbitrárias, por outro ela também permite que aqueles que não tem voz sejam ouvidos ou até mesmo que achem sua própria voz com o tempo. Após uma tragédia que a afeta profundamente, Suzu descobre que só consegue cantar como Belle, compartilhando sua música sem se preocupar e quem vai ouvir e descobrindo, contra todas as possibilidades, que outras pessoas querem ouvi-la.

Esboço conceitual da protagonista do filme animado Belle. Feito à lápis, ele traça a personagem olhando para o topo direito da imagem, com os braços se abrindo por baixo de uma capa. Belle é uma mulher magra de cabelos longos e esvoaçantes, com uma trança em cada um dos lados. Ela possui sardas alinhadas em uma linha reta embaixo de seus olhos e padrões geométricos nas bochechas e uma tiara com asas de borboleta estilizadas em cada lado. Ela abre a boca como se estivesse cantando e seus olhos são grandes e expressivos. Ela usa uma capa por cima de uma roupa escura que aparenta ser um colete. No centro da capa há um broche oval.
Colaborando com um designer de personagens da Disney, Hosoda nos dá um tipo diferente de princesa (Foto: Jin Kim)

Muito mais do que o remake medíocre e desinteressante de Bill Condon em live-action, Belle é capaz de reviver a magia da animação de 1991 através de sua própria combinação de animação e sonorização, mesmo sem adaptar diretamente a sua fábula moral. O próprio design mágico e technicolor de sua protagonista vem de Jin Kim, veterano da Disney e responsável por personagens de Frozen, Operação Big Hero e Zootopia. O vínculo indelével da obra com o clássico, no entanto, vai muito além do material e da caracterização, e é ressaltado na gravidade que Hosoda e o Studio Chizu dão ao casamento entre imagem e som, na capacidade de criar sonhos que define o Cinema como o conhecemos. Como diversos profissionais ressaltaram durante a noite de premiações no Oscar 2022, onde a categoria de Melhor Animação foi apresentada por três das atrizes que deram vida às suas contrapartes animadas nos remakes recentes, animação vai muito além de algo “para crianças, e que os adultos têm que aguentar”.

“Enquadrar os cinco nomeados ao prêmio da Academia de Melhor Animação como produtos corporativos para crianças que os pais têm de aguentar a contragosto poderia ter sido encarado como um simples descuido. Mas para aqueles de nós que dedicamos nossas vidas para fazer filmes animados, esse descuido se tornou rotina. O diretor de um grande estúdio de animação uma vez disse à uma reunião de animadores que, se jogássemos nossas cartas corretamente, um dia ‘passaríamos para o live-action.’ Anos depois, um executivo de outro estúdio disse que um certo filme animado que fizemos foi tão bom que o lembrou de ‘um filme de verdade.’”

– Phil Lord e Chris Miller, em um artigo de opinião para a Variety

Em Belle, vemos a história de uma jovem lidando com um luto debilitante e cáustico, expressando seus sentimentos por meio de visuais deslumbrantes e músicas de partir o coração. Acompanhamos sua transição entre a vida real e um recomeço virtual, por meio da mudança de técnicas 2D e 3D de animação que dão profundidade física e temática aos seus personagens e seus conflitos, em uma celebração do meio que conta sua história exatamente por ser uma história que só poderia ter sido contada por esse meio.

Mesmo ficando de fora do Oscar 2022, Belle conseguiu abocanhar cinco indicações ao Annie Awards, sendo ovacionado durante 14 minutos após sua estreia no Festival de Cannes em 2021, e não é difícil entender o porquê: o terceiro ato do longa é uma declaração de afeto do tipo que inspira cineastas até hoje, o tipo de sequência que extraí lágrimas não de tristeza, mas em virtude do quão belo tudo ao seu redor é, reunindo e ordenando belamente seus principais temas e ideias ao longo de sua melhor canção, jogando todas as cartas na mesa e implorando para que você sinta a canção junto de Suzu.

Cena do filme animado Belle. Suzu (Kaho Nakamura) flutua acima de uma multidão no mundo virtual de U. A multidão abaixo dela é composta por incontáveis luzes amarelas cintilando em direção ao horizonte, onde estruturas retangulares se erguem de cima para baixo e de baixo para cima. O céu é composto por ainda mais dessas estruturas e, no espaço em que elas quase se encontram, o horizonte é composto por um céu noturno repleto de estrelas e uma luz crescente, cortada por uma linha ondulada branca que vai de uma ponta a outra. Suzu está do lado direito da tela, segurando sua própria luz amarela no peito, de costas para a câmera. Ela é magra, tem cabelos pretos até os ombros e usa uma camiseta branca e uma saia preta.
“Sem alguém para amar, o que há para se viver?” (Foto: Studio Chizu)

Belle é, despudoradamente, uma história de amor. No entanto, é uma jornada que nos desafia a recontextualizar o amor não como um ideal romântico, mas como uma ação necessária para a vida em sociedade. Como um dos efeitos da ascensão das redes sociais, Hosoda nos pergunta fervorosamente: o que nós devemos uns aos outros? Até que ponto devemos ir por pessoas que não conhecemos, mas às quais estamos intimamente ligados? Se o amor não te impele a se sacrificar por alguém, a se entregar por completo, o quanto ele realmente vale?

Acontece que nenhuma dessas perguntas tem respostas simples. As diversas complexidades da vida contemporânea também se aplicam no meio virtual, e seus realizadores deixam claro que U não é uma utopia. Ainda há vilões que buscam condenar os outros e usam máscaras para esconder sua crueldade; verdades e mentiras se espalham e igual medida e o tribunal da internet nunca absolve, apenas condena. 

Mas, apesar de tudo isso, Hosoda encara o futuro com o otimismo inabalável de alguém que acredita plenamente no potencial humano de estarmos prontos para ajudar quando alguém precisar, de que se olharmos o mundo como uma única comunidade, veremos que não há outra coisa a fazer senão amar uns aos outros e se sacrificar por todos. E que no fim, assim como no começo, você só pode ajudar alguém sendo quem você é. Em sua última nota musical antes do fim climático da jornada de Suzu, Belle faz um único apelo à sua audiência, não na voz de uma celebridade virtual, mas na de uma adolescente que acaba de entender a dimensão do amor que a envolve: “Cante!

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