Bruno Andrade
O que parece ser unânime em relação a Alejandro González Iñárritu é que ele nunca se esforça em agradar. Disso surgem virtudes e defeitos: ele pode criar obras originais e autênticas, com refinado valor estético, mas também pode cair no escárnio, na decepção, na epopeia que pode ser o ego de um diretor. Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades parece ser o meio termo entre essas duas situações. Com uma trama que se propõe a traçar a história de um renomado jornalista e documentarista mexicano, Silverio Gama (Daniel Giménez Cacho) – personagem marcado por uma profunda crise existencial –, o longa integrou a seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Alguns elementos presentes no filme são marcas de Iñárritu (as mesmas marcas que o fizeram vencer o Oscar de Melhor Diretor dois anos consecutivos, por Birdman, ou a Inesperada Virtude da Ignorância [2014] e O Regresso [2015]): a câmera lenta e espaçada que passa por todos os cantos, quase nunca estacionada em um só lugar; o fluxo verborrágico do protagonista que se mistura às pequenas tramas narrativas que ele próprio descreve; o nonsense que, muitas vezes, se mostra apenas uma realidade vista de longe, interpolada pela criatividade da memória; e, principalmente, a representação da consciência do personagem principal.
A princípio, o título do filme diz tudo o que se precisa saber. “Bardo” é o termo tibetano para o lugar entre a vida, a morte e o renascimento, presente no texto sagrado do Livro Tibetano dos Mortos. O resto fica a cargo da composição narrativa do roteiro de Iñárritu e Nicolás Giacobone, roteirista argentino responsável pela trama de Birdman. Essa informação também é de se atentar, visto que, em muitos aspectos, Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades parece um “Birdman 2”, cujos elementos se assemelham em muitos níveis, inclusive sob a perspectiva de um protagonista artista (no longa de 2014, um ator em decadência; no filme de 2022, um documentarista no auge), que não sabe qual caminho seguir.
É Daniel Giménez Cacho, que integrou o elenco de Siberia (2020), de Abel Ferrara – filme que aborda igualmente o limiar entre vida e morte (o “bardo”) –, que dá vida ao protagonista menos caótico da filmografia de Iñárritu. Na trama, há 20 anos, ele foi um apresentador de TV, mas se afastou desse papel quando percebeu que estava vendendo uma versão comercial da realidade. Ele queria falar “algumas verdades”, as quais tornaram-se cada vez mais difíceis de serem ditas num México que se curvou aos efeitos nocivos de uma mídia violenta. Silverio Gama consegue realizar seu desejo e se transforma em um repórter de renome em Los Angeles. Ainda assim, a obra não se propõe a ser uma odisséia de sua redenção (como Birdman é, por exemplo), e Iñárritu mistura realidade e ficção, acenando às interpretações de que as duas, na verdade, podem ser a mesma coisa – tudo depende do ponto de vista do observador. Na prática, o personagem percebe que a realidade, por si só, é pura ficção.
Depois de uma temporada premiada com O Regresso, interpolada pelo curta-metragem Carne y arena (2017) – resultado de um projeto de realidade virtual que recebeu um Oscar Especial da Academia –, o novo projeto do diretor não conseguiu os mesmos feitos. Após as primeiras exibições, o longa (que chega em breve aos cinemas brasileiros) teve um mau desempenho. Tentando remediar o que parece inevitável, o diretor cortou quase 30 minutos de filme, além de gerar uma reedição de diversas outras partes – é essa versão reeditada que integrou a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e chega à Netflix no dia 16 de dezembro, numa nova estratégia de distribuição da empresa, que o lançará primeiro nos cinemas. Ainda assim, o longa totaliza praticamente três horas de duração.
Todavia, é interessante perceber como Bardo, Falsa Crónica de unas Cuantas Verdades (no original) antecipa as próprias críticas que recebeu. Em uma das sequências do filme, durante a festa em homenagem à Silvério, ele entra num embate com Luis (Francisco Rubio), um ex-colega que se tornou uma estrela do sensacionalismo na televisão mexicana. Luis ataca Silverio por sua auto-indulgência e pretensão, acusando-o de se autoproclamar “artista” para os norte-americanos, esquecendo, assim, suas origens. Como resposta, o protagonista profere um discurso sobre a hipocrisia de uma mídia que sacrifica integridade e decência pelo altar das críticas e curtidas nas redes sociais. De alguma forma, Iñárritu esperava que seu filme fosse condenado por aquilo que atacou.
Em outra cena, na qual Gama discute com o filho – o adolescente Lorenzo (Íker Sánchez Solano) –, questões sobre o colonialismo e a relação Estados Unidos — México surgem de forma visceral. Durante o embate entre os dois, o filho defende os ianques e elenca todas as “virtudes tecnológicas” de um país regido pelo dinheiro, ainda que o pai tente jogar luz na memória histórica do país latino-americano, argumentando acerca das tradições mexicanas. O curioso é, para além do debate, perceber como esse diálogo foi construído no roteiro: Lorenzo começa, lentamente, a inserir palavras em inglês durante o confronto, enquanto Silverio permanece falando o espanhol.
Próximo ao fim da discussão, Lorenzo está falando totalmente em inglês, sinalizando para a colonização do próprio garoto na conversa. Como consequência, o pai grita: “fale espanhol, estamos no México”. Segundos depois, o próprio Silverio está redigindo um discurso do prêmio que irá receber nos Estados Unidos – o inimigo que, agora, lhe concede reconhecimento. Parte da crise existencial dele surge daí, no que também parece uma autocrítica do próprio Alejandro G. Iñárritu: depois de uma história marcada por questões nacionalistas, elencando elementos de seu próprio crescimento e país de origem nas concepções artísticas, o reconhecimento se consolida, somente, após passar pelo crivo da Academia norte-americana – e, pior: depois de aceitar tudo isso. Como Silverio diz em uma das cenas, “o sucesso tem sido meu maior fracasso”.
Submissão do México no Oscar 2023, o filme tem um enredo que parece uma mensagem do próprio diretor a ele mesmo, uma autocrítica expandida com um personagem que em muito poderia ser um alter ego. Além de ter consciência do baixo envolvimento que o grande público deve ter com a obra, o diretor também disse em entrevista que incluiu “alguns pensamentos que eu tenho comigo mesmo”. Ele sabe que o establishment estadunidense passou a enxergá-lo como uma fraude, um indivíduo pretensioso que ninguém entende como entrou para a História com dois Oscar’s seguidos (algo que não acontecia na categoria desde 1950). Talvez por isso o roteiro avance para o caricatural em diversos momentos, ao mesmo tempo em que dá piscadelas de que tudo não passa de um grande sonho no limbo da morte.
A bem da verdade, e talvez de forma cíclica, Bardo é o primeiro longa em que Iñárritu retorna ao cenário mexicano, depois de sua elogiada estreia com Amores Brutos (2000). De qualquer forma, trata-se de uma produção cinematográfica que é, em muitos aspectos, psicodélica, e por isso soa desigual. O que em algumas produções seria o seu maior feito, aqui fica confuso, e a ausência de distinção entre memória, verdade, mentira, realidade e ficção coloca tudo numa “cama de gato”. Existem trechos que apelam para o drama e outros para o surrealismo, cuja ligação não é forte o suficiente para sustentar essas mudanças bruscas. Mesmo que autorizadas pelo subconsciente de Silverio Gama, as variações só acenam para o enlouquecedor, e o final, propriamente, não parece finalizar nada.