
Jamily Rigonatto
Quanto terreno fértil a criminalidade pode encontrar nas partes do mundo ignoradas pela preocupação social? Em temos reais e muito pessoais, As Hostilidades documenta isso em lentes trêmulas. Dirigido por M. Sebastian Molina, o filme mostra as mudanças da cidade de Santa Lúcia, no México, após a violência se tornar protagonista em um espaço aparentemente vazio, mas cheio de memórias e feridas.
Os 70 minutos da obra são quase informais, filmados de uma maneira que mescla o relato e a paisagem, a sensação é de invadir o diário secreto de alguém. Assim, o tom intimista quebra o gelo presente no cerne de produções em formato de documentário, e caminha por um horizonte em que a narrativa é subjetiva. O efeito é enfatizado pela falta de um tripé ou equipamentos técnicos, aqui, as mãos que seguram a câmera – que são do próprio Molina – têm a terra de Santa Lúcia na ponta dos dedos.

Com cenas tomadas por uma zona de lentidão – que pode ser atribuída à pouca movimentação do lugar – o desenrolar da produção é menos fluido que o ideal, mas, ainda assim, é impossível estabelecer qualquer frame como irrelevante. Cada pedaço do chão arenoso guarda uma história melancólica e dolorosa de como a risada das crianças se tornou o silêncio promovido pelo medo, enquanto os jovens adultos, que sonharam com futuros cristalinos, perdem toda a ingenuidade para o narcotráfico.
Na voz desses homens sem perspectiva, as transformações ganham forma física por trás da pouca iluminação. Em suas vozes, que perambulam por notas de vergonha e revolta, o lugar pouco relevante para o resto do mundo se afirma em milhares de significados. Aquele “lugar do meio”, como descreve o diretor, foi casa de laços sinceros, desejos esperançosos e sorrisos ingênuos de pessoas que agora convivem com a sensação de não sentir segurança em seus próprios lares.

Não é como se fosse exatamente o tipo de filme fácil de vislumbrar, pois as camadas de As Hostilidades são tão pessoais que o observador pode não ser capaz de entender a mensagem por completo. Em alguns momentos, as crianças correm envoltas por sons de leveza e diversão, e é um desafio entender se aquilo faz parte dos resquícios de pureza que recobrem a geração mais jovem ou são retratos de uma lembrança presa ao passado.
Assim, a experiência do telespectador é muitas vezes monótona e misteriosa, mas isso é perdoado pela força do grito de socorro ecoado por Santa Lúcia. Ao fim, a sensação é de impotência por saber que, assim como essa, muitas outras cidades sofrem com um contexto político que troca a humanidade pelos lucros e finge se esquecer das consequências para os que lidam com os problemas sistêmicos restantes.
Em vidas resumidas ao impasse da falta de possibilidades, o ato de suportar é tão rotineiro quanto a involuntariedade da respiração. As Hostilidades não é o primeiro nem o último relato de dores inundadas pela invisibilidade, mas sua singularidade retoma o fato de que é colocar tudo em uma só caixinha que normaliza realidades cruéis. Embaixo das cores vibrantes do mundo desenvolvido, o mundo real se colore em um cinza hostil.