Gabriel Gomes Santana
“Eu não sou advogado de ninguém, meu papel como promotor de justiça é acusar”. Assim se impôs Julio Strassera, responsável por um dos julgamentos mais importantes para a democracia ocidental e protagonista de Argentina, 1985. Baseado em fatos reais, o longa dirigido por Santiago Mitre traz à tona o processo que condenou os crimes contra os direitos humanos cometidos pelos ex-comandantes da ditadura no País. Disponível na plataforma de streaming da Amazon Prime, a obra expõe a coragem e persistência de agentes públicos que se comprometeram a enfrentar um sistema repressivo e assassino.
Ficção e realidade se misturam
Na tentativa de se aproximar da realidade, o filme apresenta um panorama histórico completo e bem aprofundado sobre o período de recente democratização do país hermano. Instaurada na Argentina de 1976 a 1983, a última ditadura que a nação enfrentou ficou marcada por um regime autoritário, repressivo, sangrento e que deixou traumas e feridas abertas até hoje. Ainda que pairasse no ar um sentimento de retomada do poder popular, já com o fim dos governos militares, todos os crimes cometidos até aquela ocasião deixavam perguntas sem respostas através de um sentimento de injustiça dominante perante a sociedade platina.
Assim como aconteceu na Segunda Guerra, no caso do imprescindível Tribunal de Nuremberg, mais do que dar um basta à barbárie, era necessário encontrar os culpados pelas torturas, assassinatos e massacres. Afinal, não é ao acaso que a estimativa sobre o número de assassinados pelo comando militar argentino ultrapassa a casa dos 30 mil durante os sete anos de sua cruel permanência. Ainda que tentasse esconder, uma boa parcela da população ansiava por um julgamento que criminalizasse os engenheiros deste caos. É a partir daí que a trama de Argentina, 1985 se inicia.
Em 1983, ano da retomada eleitoral argentina, o então candidato Raúl Alfonsín se elegera através de um discurso que evocava angústia sobre o desaparecimento de milhares de pessoas, tendo o apoio das Mães da Praça de Maio. O movimento foi crucial para que os argentinos se sensibilizassem com a dor de mães e avós que procuravam o paradeiro de seus filhos e netos (muitas continuam em busca de respostas até hoje). Quando Alfonsín assumiu a cadeira presidencial, a imprensa acreditou que, em um primeiro momento, seu governo teria um caráter conciliador, mas ele provou o contrário, sendo bastante afrontoso: colocou nove ex-comandantes militares no banco dos réus para responderem sobre crimes contra humanidade.
Por conta desta brilhante e corajosa decisão, dois anos depois do decreto, a figura do promotor Julio Strassera se fez presente. No longa, ele nos envolve em uma aventura judicial que vai atrás de provas concretas, aliadas a fortes depoimentos de vítimas sobreviventes das sessões de torturas físicas e psicológicas empreendidas por Videla e seus sucessores. O gran finale de Argentina, 1985 estabelece um basta às atrocidades da ditadura. Pelo menos, esse é o sentimento que o filme traz e que, infelizmente, não ocorreu da mesma maneira no Brasil, mas que pôde dar luz a algumas dicotomias.
A principal destas contradições diz respeito à Lei de Anistia, uma vez que livrou perseguições políticas, mas deixou as atrocidades militares por debaixo dos panos da história. A grande reflexão por trás da película diz respeito ao modus operandi reforçado em não apagar memórias. À sua maneira, diversos trechos da narrativa abordam como o país consegue discutir suas dívidas com o passado, demonstrando como a defesa democrática passa, antes de tudo, por uma isonomia de direitos e respeita a atuação autônoma entre os poderes do Executivo e Judiciário.
Nossos hermanos estão longe de ser um povo sem defeitos, mas é justamente a coragem de lidar com o desagradável e expô-lo para a opinião pública que lhes sobra resiliência para seguir em frente debatendo temas cruciais. Recentemente, a dura crise financeira que o país enfrenta pode ser um exemplo disso. Apesar de todas as discussões (extremamente necessárias) acerca do cenário sociopolítico, o futebol mostrou, mais uma vez, o quanto o povo se une em prol de um mesmo objetivo. A cultura popular tem o papel fundamental de estímulo à superação, assim como Argentina, 1985 também cumpre essa missão ao exemplificar aquilo que jamais deve ser tolerado.
O grande trunfo
Muitas produções cinematográficas apostam suas fichas em um elemento técnico que se sobressai com sutileza e vigor. A grosso modo, musicais, por exemplo, tendem a valorizar a escolha de uma trilha sonora de impacto e que vá de encontro com a proposta original e estética. No caso do longa, o grande trunfo se baseia na caracterização e atuação dos personagens. Interpretados por Ricardo Darín e Juan Pedro Lanzani, as figuras de Júlio Strassera e Luís Ocampo, respectivamente, são idênticas aos promotores originais.
Para além da semelhança física com as pessoas reais que estiveram à frente do processo, é impressionante analisar o perfil satírico e dramático presentes em ambas personalidades na ficção. Strassera é um homem experiente, com um olhar atento a tudo e a todos. Porém, seu temperamento frágil o coloca em situações embaraçosas que, embora demonstrem seriedade diante das ameaças sofridas, são um tanto quanto cômicas devido a sua reação, tentando transmitir controle e calma, só que de um jeito desgovernado.
Ocampo, por outro lado, é o ‘aprendiz caxias’, esforçado em trazer resultados para as incógnitas complexas dos problemas apresentados pelas testemunhas. É curioso notar o quanto ele acaba quebrando a cara ao entender que nem tudo é tão simples e racional quanto parece, sobretudo diante de uma sociedade ainda fragilizada pelo medo de uma tirania tão influente no imaginário coletivo da época. Parente de militares, o jovem promotor adjunto representa o clichê necessário do ‘padawan’ ansioso que se espelha num sábio ‘jedi’ atrapalhado.
O Teatro possivelmente contribuiu para uma das maiores e mais difíceis habilidades no campo da atuação: a improvisação. Mesmo que no Cinema o produto final seja gravado e editado em cortes, é possível observar quando uma equipe ensaiou uma sequência cênica e quando não. A espontaneidade dos diálogos de Argentina, 1985 alia-se à autonomia de Mitre em escolher trechos que, assustadoramente, poderiam acontecer na vida real sem serem previamente pensados.
Diversas cenas do filme reproduzem o recurso da improvisação e trazem um toque magistral ao aproximar o espectador ao elenco da trama. Os relatos das vítimas e testemunhas parecem ser direcionados a quem assiste, tornando-os ainda mais comoventes e emocionantes. Da mesma forma são os diálogos da família Strassera, dando a impressão de que o quinto elemento participante das discussões seja a quarta parede. Em nenhum momento a obra tem a intenção de quebrar essa barreira. Estes detalhes são fruto de uma qualidade fílmica ímpar.
No Brasil, o público tem o hábito de classificar todo longa-metragem que não tenha os padrões hollywoodianos como alternativos e cult. Argentina, 1985 está longe disso. Os parâmetros criativos adotados pelos roteiristas Santiago Mitre e Mariano Llinás, se não superam, são equivalentes a qualquer clássico de embate jurídico. Não à toa, desde que foi lançada no segundo semestre de 2022, a obra tem percorrido os principais festivais internacionais de Cinema, dentre eles, um dos principais: Veneza.
Indicado e candidato favorito ao Oscar 2023 na categoria de Melhor Filme Internacional, a obra é representatividade máxima na América Latina. O trabalho empenhado pelas lentes de Mitre não apenas foi aplaudido pelos críticos durante nove minutos, quando exibido pela primeira vez na cidade italiana, como também consagrou-se vencedor do Globo de Ouro na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. “Depois da Copa do Mundo, é uma grande alegria“, comemorou Ricardo Darín, cheio de emoção. Pode-se dizer que tal feito é semelhante à comparação do ator, uma vez que se destacou entre potentes internacionais, como Decision to Leave (Coréia do Sul), RRR (Índia) e Nada de Novo no Front (Alemanha).
Vanguarda na arte de fazer excelentes filmes, a Argentina se destaca como um dos países que são referência quando o assunto é Cinema. Embora cada obra, diretor, produtor e roteirista tenham perspectivas singulares e distintas, é interessante destacar como a cultura local consegue executar com maestria a transparência dos estereótipos de seu povo. O combo de ricas emoções, contradições e um jeito peculiar de dramatizar assuntos sérios através de um alívio cômico, faz do enredo de Argentina, 1985 o mais puro suco argentino possível. Maradona, série bibliográfica sobre o grande ícone e camisa 10 hermano é outro exemplo disso.
Talvez seja por essa razão que a originalidade e talento dos atores envolvidos no filme tenha atraído o carisma dos espectadores, sobretudo dos países latinos. Trazer à tona as lembranças de um passado sombrio, infelizmente comum aos países do Cone Sul, é fundamental, não apenas por uma questão de representatividade. Também, para que as sociedades civis destas nações jamais se esqueçam como se deu a conjuntura golpista que elevou as desigualdades sociais e, ainda hoje, colocam em risco a democracia. Argentina, 1985 não traz uma história inusitada sobre uma trama de ficção. Ele simboliza o quanto o povo, quando protegido por agentes públicos sérios, é capaz de defender direitos sem passar panos quentes na história.