Gabriel Gomes Santana
O recente documentário AmarElo – É Tudo Pra Ontem foi aclamado quase por unanimidade. A produção original da Netflix exibe o evento de estreia do mais recente álbum do rapper Emicida, AmarElo. O artista reúne todas as pessoas que, durante muito tempo, não tiveram a oportunidade de sequer pisar no Theatro Municipal, principal símbolo da cultura erudita do país. Emicida nos revela o porquê de suas letras, mensagens, parcerias e missões. Mais do que isso, o show traz um profundo sentimento de esperança aos seus espectadores. Ao mesmo tempo que evidencia os diferentes males que assolam nosso país, também constrói um forte apelo à esperança de tentar mudar esse cenário.
Divida em três atos (Plantar, Regar e Colher), a obra de Emicida junto à direção de Fred Ouro Preto consegue instigar a atenção do espectador para um lindo processo de reflexão análogo à germinação das plantas e árvores. Como se tudo o que produzimos atualmente fossem frutos colhidos das raízes do passado. Neste texto, eu procuro elucidar algumas reflexões de cada faixa do disco, de acordo com as explicações fornecidas pelo autor ao longo do documentário. Em seu amplo processo de composição e pesquisa, Emicida elaborou didaticamente o porquê de cada canção pertencer a uma simbiose perfeita do enredo que é narrado. Me acompanha nessa viagem?
“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”.
Para os iorubás antigos, nada é recente. Tudo faz parte de um motivo maior e por isso, podemos aprender com o passado. O modo como lidamos com o presente é o que realmente importa, pois apenas com ele e através dele, enxergamos o mundo à nossa volta. Isso serve para criar releituras, superar traumas e se desafiar a interpretar a vida de um jeito mais harmônico. O documentário AmarElo – É Tudo Pra Ontem é um suspiro aos desacreditados, um guia para os perdidos, um gás para aqueles que já se encontram sem fôlego. Já que o foco do artista é tratar sobre brasilidades, então este é o hit certo para quem tanto lembra dos esquecidos.
AmarElo, além de ser uma ponte entre radicais que se completam, também é a cor que nos ilumina a enxergar o caráter cíclico da natureza. Mergulhado em um incrível passeio sobre a história da arte popular brasileira e o passado dos protagonistas que alavancaram a cultura nacional mas que, infelizmente, são frutos do esquecimento marcado pelo racismo estruturante em nossa sociedade.
Pixinguinha (precursor do samba e da música genuinamente brasileira) é uma referência artística pouco lembrada pelo cenário cultural e musical. Além disso, sua fama repercutiu internacionalmente junto com o grupo Oito Batutas, mas será que ele é pouco lembrado por conta da cor da sua pele?
Mediante a contextualização de um Brasil pós-abolicionista, o filme registra as raízes que ajudaram a fortalecer o protagonismo dos movimentos negros, mesmo com condições totalmente adversas. O curioso é que, para cada figura que é retratada na obra, há uma menção, inspiração ou homenagem nas suas músicas. Este é o elemento surpresa de Emicida. Como se não bastasse a reflexão de suas letras, entendemos quais foram as inspirações pelas quais teriam sido produzidas.
A essência do disco orienta o filme. De início, Principia traz em sua estrutura narrativa um sonho. Nele, somos convidados a amar uns aos outros, em sintonia firmada com a sonoridade do vento. É um som etéreo e convidativo que nos remete, de imediato, a canções de ninar, as mesmas que armazenamos em nossa memória infantil e, em um piscar de olhos, são resgatadas através de uma conexão. Essa chave que liga “o eu” com “o outro” constrói um elo, e é aí que a lembrança amorosa traz a seguinte mensagem em meio a escuridão: “tudo que nóis tem é nóis.”
As duas próximas faixas, A Ordem Natural das Coisas e Pequenas Alegrias da Vida Adulta, endossam um olhar ao poder da simplicidade presente no cotidiano. Já parou pra pensar sobre a riqueza dos detalhes? O quão difícil é ser adulto? Se por um lado presenciamos diariamente o milagre do amanhecer, não há porque deixar de lado as pequenas alegrias da vida adulta. As batidas de ambas canções carregam sintonia através de ritmos do samba-rock, jazz e MPB.
Qual é a verdadeira “Ordem Natural das Coisas”? É ter medo? Sentir-se infeliz e com ódio? Não. Emicida, diferente do estereótipo do que muitos imaginam, não quis demonstrar o seu lado revoltoso e agressivo perante as injustiças que vem ocorrendo. O que há de mais natural é sermos nós mesmos. Sermos gratos pela vida, pela natureza e principalmente por termos o privilégio de nos conectarmos uns aos outros. É como o rapper mesmo diz: “O maior ato de rebeldia contra o sistema é eu estar aqui sorrindo com vocês”.
É interessante a maneira como o longa possui diversas transições com narrativas representadas na forma de animação. Este trabalho bem feito é de autoria de Alexandre de Maio e Felipe Macedo (direção de animações) e André Juventil (direção de arte). As ilustrações nos auxiliam a compreender a verdadeira face de quem é pouco reverenciado pelo imaginário de boa parte da população.
São ilustradas as narrativas “esquecidas”, a exemplo a do arquiteto Tebas. Negro, ele foi responsável por planejar as fachadas do Convento São Bento e da Igreja São Francisco do Carmo, no período da escravatura. Além de ser símbolo de resistência, Tebas contribuiu sendo uma das principais referências no estilo arquitetônico da cidade paulistana. Como ele, diversos outros expoentes pretos puderam agir para que hoje tenhamos um cenário mais rico e representativo do povo negro.
Em sua parceria de anos com Wilson das Neves, um dos maiores bateristas e instrumentistas da América Latina, Emicida reconheceu o valor de uma amizade. Ora, existe alguém mais sábio nesse quesito do que o mestre Zeca Pagodinho? Uma canção feliz e exuberante: Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo). A letra não somente é em homenagem a Das Neves, como também toda sua composição foi criada em cima de harmonias encontradas em suas parcerias com Elza Soares.
Cananéia, Iguape e Ilha Comprida é firmada pela transição de conhecimentos entre gerações distintas. Os diálogos amorosos entre pais e filhos retomam o que há de mais singelo entre o tempo: a troca com o outro. Em AmarElo, Emicida transcende as famosas “pedradas do rap” e em especial nesta faixa, observamos um curioso olhar ao amor, às delicadezas, nuances e, principalmente, ao belo. O rap é ritmo e poesia, não precisa carregar estereótipos de maldade, mágoa, rancor e ódio em sua imagem. O artista rompe com essa visão, ironizando aqueles que sustentam essa visão estereotipada, através das gargalhadas de sua filha caçula logo na introdução da canção. Ao final, mensagens fofas e carinhosas transbordam a alegria de sua filha mais velha com as famosas “cartas de amor”.
A linguagem sutil de um caos instaurado na modernidade retrata bem os primeiros versos de Paisagem. A letra trabalha com antagonismos muito marcantes entre aparência e essência do ser. Ela ainda é capaz de gerar incômodos, afinal, mesmo diante da violência, somos treinados a ignorá-la em nosso interior, um modo de sobrevivência do dia a dia. O seu horizonte revela que ódio pode corroer tudo, exceto o nosso coração, caso o mesmo esteja em paz.
Em 9nha, por outro lado, é contada a história de um amor bandido, estilo Bonnie e Clyde. A música, que foi produzida em parceria com Drik Barbosa, trata-se de um relato apaixonante e ao mesmo tempo perverso, onde a maldade da sexualidade confunde-se com o “lado B” da vida do casal. Uma verdadeira aula de linguagem, mesclando duplos sentidos com gírias jovens que conversam com adolescentes rebeldes e apaixonados. “Ó meu bem, a gente ainda vai sair nos jornais” traduz a fama de jovens sonhadores que almejam ser notados.
Eis que surge a nona faixa, Ismália, a mais poética de AmarElo. Com a declamação do poema de Alphonsus Guimarães, Fernanda Montenegro e Emicida incorporam uma nova versão para o texto da poesia, lançada no século XIX, para os dias atuais. A música homenageia a luta de mulheres pretas guerreiras como: Ruth de Souza, Lélia González, Leci Brandão, Ivone Lara, Marielle e tantas outras personalidades marcantes para a representatividade da luta feminista antirracista.
Preconceito racial, violência policial, estereótipos raciais, ódio e empoderamento são os principais temas abordados em Eminência Parda, um trabalho conjunto de Emicida, Jé Santiago e Papillon. Nos bastidores da gravação do clipe desta música, o ‘assassino de MC’s’ solta a seguinte frase: “Eu não sou o alvo do racista, eu sou o pesadelo dele”.
Então chegamos na penúltima faixa, AmarElo, que além de lidar com questões sobre auto aceitação, busca por um ideal, sonhos, fé… Trabalha com maestria sobre o enfrentamento de temáticas delicadas, através de uma mensagem amorosa. No fundo, é o remédio que todos nós precisamos nesse exato momento.
A ideia de produzir a canção ao lado de Majur e Pabllo Vittar foi excepcional. Além de trazer duas grandes vozes para compartilhar talento, Emicida deu um show de diversidade. Até porque, não existe luta que seja separada das demais e mais uma vez, com seu lindo discurso humanista e performance fora da curva, fez questão de nos lembrar da importância da união.
A frase do refrão “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” vem de um sample de Belchior (gravado há mais de 40 anos) que diz muito sobre resistência e se permitir conquistar espaços. Esse é o ideal de querer retratar diferentes lutas em seu clipe. “Você é o maior representante do seu sonho na face da terra”, “Te vejo no pódio”, “Cê vai sair dessa prisão”, “Cê vai atrás desse diploma”, “Faz isso por nóis”.
Neste ciclo que se fecha, somos acordados com a melhor percepção de nós mesmos. Com a autoestima renovada, temos a certeza de que somos Libre (a faixa que conclui o disco). Na tentativa de reconstruir o futuro, colhendo os ensinamentos dos erros passados no presente, o artista se coloca como um grande mestre. Ele reconhece a razão de suas letras, mensagens, parcerias e missões. Mais do que isso. Emicida nos desafia a entender a situação de um país profundamente racista como o de hoje, mas que ainda tem a esperança de se erguer.
O desfecho do filme consegue oferecer esperança aos tempos pandêmicos que ultimamente enfrentamos. Coincidência ou não, todo o medo e desilusão já foram enfrentados mais de cem anos atrás e somente a arte foi o remédio encontrado para nos tirar deste poço sombrio. Tentaram calar Marielle, mas o seu legado permanece cada vez mais forte. O último trecho do documentário AmarElo – É Tudo Pra Ontem encerra com o seu depoimento inspirador:
“É fundamental porque marca o século XXI que é esse momento que a gente vive de impulsionar, de fortalecer, de mais visibilidade para essas mulheres negras. Então o que a Dona Ruth começa lá atrás, é o que está florescendo hoje.”
A lição que fica disso tudo está relacionada ao direito de nos permitirmos. Aprendemos um com “o outro”, mas enquanto “ele” não tiver iguais condições para poder ser livre, estaremos privados de conhecer novas cores, presos na escuridão da intolerância e do preconceito.
É urgente que o povo preto, periférico e LGBTQ+ também tenha direito à cultura. Eles não somente têm direito, como também são os responsáveis pela maioria das produções artísticas do país. No fundo, tanto o álbum quanto o documentário AmarElo cumprem sua missão e percebemos que devemos mudar nossas atitudes e olhares “para que amanhã não seja só um ontem, com um novo nome”.