Jho Brunhara
Viggo Mortensen já é um rostinho conhecido em Hollywood. O ator estadunidense encarnou Ben em Capitão Fantástico, e Tony Lipp no terrível Green Book. Em Ainda Há Tempo, a primeira investida de Mortensen atrás das câmeras, somos apresentados para um filme não só dirigido por ele, mas também escrito, produzido, atuado e embalado por uma trilha sonora composta pelo mesmo. O longa chega de forma muito tardia ao Brasil por motivos pandêmicos (sua primeira exibição foi em janeiro de 2020), através do Festival do Rio 2021, e a qualidade da produção, infelizmente, não é suficiente para compensar a demora.
Ainda Há Tempo se parece de espírito com Green Book. Em primeiro momento, a construção emocionalmente apelativa e o ótimo trabalho dos atores fisga a atenção e te faz acreditar que este é um bom filme. Mas, quanto mais se pensa, mais o vislumbre desaparece. À começar pela premissa que é um pouco enganadora: a campanha de divulgação do longa dá a entender que a história será sobre um pai homofóbico que sofre de demência e o convívio que estabelece quando passa a morar com seu filho, gay e casado com outro homem. Porém, logo percebemos que o foco é menos sobre a questão da homofobia e muito mais sobre um homem idoso detestável, que não resguarda sua ruindade apenas para questões de sexualidade, apodrecendo tudo e todos em sua volta.
Não há problema nenhum que um filme pareça algo e, durante seu desenvolvimento, se transforme em outra coisa. Porém, quando se usa da temática da homossexualidade para vender uma história, é no mínimo estranho que o produto final desvie tanto da mística construída na divulgação. Essa estranheza se acentua quando sabemos que Viggo Mortensen, até então, é um homem hétero, que interpreta um personagem homossexual em uma história desenvolvida e dirigida por ele mesmo. Quando perguntado em entrevistas, Mortensen disse não acreditar que a sexualidade de um ator deveria ter importância para considerar a designação de um papel. É um debate complexo, mas, pelo menos aqui, Ainda Há Tempo é cuidadoso o suficiente para não abusar de estereótipos ou se apresentar de forma ofensiva.
Apesar de forrar a barriga com a trama da homossexualidade, o longa é muito mais sobre um pai e marido horrível para todos do seu convívio, e os dilemas de como lidar com uma pessoa com demência. O segundo tema já rendeu até Oscar para Anthony Hopkins esse ano, por sua incrível atuação em Meu Pai, produção que teve seu lançamento muito próximo da criação de Mortensen, ambos estreantes em Sundance, mas quem levou a melhor foi Florian Zeller.
Ainda Há Tempo encontra problemas justamente por sua concepção autoral: é a primeira vez de Viggo idealizando um filme e, consequentemente, estamos vendo sua arte de forma bruta. A direção encontra problema em construir a relação com o produto que ele quer criar, e a narrativa é disforme, sem a intenção de ser. As personagens, pelo menos, são interessantes, e ficam ainda mais com as grandes atuações. Lance Henriksen é fenomenal ao entregar o pai Willis. Escrito de forma caricata, Henriksen é tão bom que faz funcionar, e esquecemos que aquele ser repugnante não é documental. O resto do elenco interpreta rostos quase sempre muito contidos, como panelas de pressão que não podem explodir, mesmo com a fervura constante de Willis.
As quase duas horas são cansativas, mas as atuações realmente sustentam a experiência. Viggo Mortensen como ator é o oposto de sua direção, e nos coloca imersos na personalidade contida de John. Laura Linney, que interpreta sua irmã mais nova, também conquista nas poucas cenas que aparece. O almoço com a família toda reunida é agoniante, mas a vergonha alheia e o desespero impressos na tela, estranhamente, não permitem desviar o olhar. Seja pela falta de filtro de Willis, seus delírios sexuais, o desconforto generalizado, ou a personalidade no ponto da neta gótica Paula (Ella Jonas Farlinger), a única que permanece na mesa, representando uma geração que sempre tem o que dizer: “eu não tenho medo de você”.
Mortensen acerta, também, em não mostrar o momento em que John se assume gay para Willis. Ninguém aguenta mais assistir isso no cinema, já foi feito de todas as formas possíveis, e a maioria idêntica, revirando o mesmo processo horrível e doloroso, para servir apenas de ponte para a narrativa. A trama do pai se constrói por situações absurdas – como a do proctologista, cômica demais para o tom –, um milhão de takes de Willis sendo misógino, racista, homofóbico e asqueroso no geral, e uma família tendo que lidar com o sentimento de impotência, afinal, quem é que vai tentar mudar a cabeça de um homem demente?
A sequência final é a cereja podre do bolo. A colagem desnecessária é confusa e dissonante, como o beijo entre John e Eric (Terry Chen) totalmente anticlimático, e o delírio de Willis, no que parece ser a representação de sua morte. O fim da vida de forma miserável e feliz, transando com uma mulher de torso nu. Falling não se importa muito em redimir as ações de Willis, mas dá leve indicações de que ele é um ‘homem machucado’, e por isso terminou a vida com essa personalidade que apodrece tudo que se aproxima dele. Somos influenciados pela fala que seu pai era uma pessoa ruim, dando a entender que essa é a origem de sua amargura, pela cena do cervo, e no abraço doloroso com o filho após a briga explosiva.
É claro que, nesse caso, é impossível abandonar uma pessoa com demência, por mais horrorosa que ela seja. Mas, tudo que assistimos nos mostra que Willis sempre foi exatamente assim, desde a primeira cena que o vemos com seu filho recém nascido. Enquanto todos em sua volta tentam suportar sua personalidade, ajudá-lo e entendê-lo, ele se fecha mais e mais e se torna ainda mais cruel. Somos ensinados que família é algo que devemos aturar independente das circunstâncias, e que devemos sempre perdoar os que compartilham o nosso sangue, mas é uma retórica perigosa que favorece indivíduos nojentos.
Essa é uma herança da sociedade patriarcal, em que a figura do homem detém o poder, e suas ações inconsequentes não precisam ser responsabilizadas: eles sentem que podem fazer o que bem entenderem, se julgarem que é o correto para o mundo, e assim se sentem acima de todos, independente das dores que causaram. Se distanciar não é abandonar, mas precisamos deixar para trás a culpabilização dos que desistiram de tentar consertar o vil.
Ainda Há Tempo nunca chega a romantizar ou forçar o perdão de seus personagens com o pai, mas sempre deixa no ar o peso que eles têm de carregar, que é suportar a personalidade cruel e podre daquela figura paterna, e todas as dores que ela causou. É uma obrigação de perdoar imposta, silenciosa e fragmentada, que contamina as vítimas dessas violências. Não devemos nos sentir obrigados a perdoar pais monstruosos apenas pela relação de sangue. Homens adultos que não querem deixar de lado o orgulho e a maldade devem ser responsabilizados como homens adultos.