Vitória Gomez
Reencontrar sentido em seus recomeços. É o que a sinopse de A Sobrevivência da Bondade propõe. Na trama, exibida na seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e vencedora do Prêmio da Crítica do Festival de Berlim, uma mulher negra é abandonada no deserto dentro de uma jaula. Conseguindo milagrosamente escapar depois de dias, ela cruza a paisagem árida em busca de salvação, para encontrar ainda mais barbárie na civilização.
A sinopse busca por recomeços, mas, a cada novo cenário apresentado, essa ideia parece mais distante. BlackWoman – como a protagonista é chamada nos créditos finais, uma vez que o longa-metragem praticamente não tem diálogos – cruza campos arenosos sem sinal de vida, cidades abandonadas por uma suposta guerra e trilhas em ambientes hostis, com o inimigo caminhando poucos metros à frente. A mulher não tem outro objetivo senão a sobrevivência e, para o espectador, o tom é contemplativo. O que estaria acontecendo ali? E, acima de tudo, o que isso significa?
A Sobrevivência da Bondade dispensa a bondade em questão. Desde o início, no entanto, o diretor Rolf de Heer (que já teve passagens vitoriosas pelo Festival de Veneza e Cannes) explicita uma aura fabulesca e fantasiosa que acompanhará os eventos dali em diante. Abrindo o trabalho com uma cena em que corpos mortos por pessoas mascaradas se revela, na verdade, a decoração de um bolo em algum tipo de comemoração, o desenrolar já anuncia que não será explicativo, mas interpretativo.
A proximidade do real, inclusive, fica a cargo de quem assiste. Enquanto vagueia pela diversa paisagem australiana, fotografada belamente por Maxx Corkindale para enfatizar a solidão e a hostilidade do cenário, BlackWoman se depara com tragédias e sofrimento humano, sem escolha a não ser seguir em frente. Se o retratado ali é uma alegoria para a realidade, a sobrevivência se mostra mais importante.
Ao finalmente se deparar com uma cidade, a personagem troca as ameaças da natureza pela ameaça do homem. Em uma situação em que ela tem de pintar o rosto com tinta para se passar por uma pessoa branca por debaixo da máscara de gás e poder andar pelas ruas sem ser capturada, o refúgio se mostra em duas crianças igualmente excluídas da parcela social considerada aceitável ali. O objetivo deles, novamente, recai em se manter vivos, uma vez que mudar a realidade parece impossível.
Longas-metragens anteriores do holandês naturalizado australiano Rolf de Heer já haviam o consolidado como um diretor autoral e de abordagens experimentais. Em The Survival of Kindness, ele parece propor mais uma reflexão do que uma narrativa fechada e com significados consolidados. Ao passo que BlackWoman caminha e transpassa desafios, ela encontra novos e, cada vez mais, se aproxima de situações sem humanidade e aparentemente sem saída.
Em meio ao racismo, à escravidão moderna e a um vírus contagioso (ao qual somente as pessoas brancas mascaradas têm direito à proteção), de Heer cria situações que podem servir de alegoria à realidade. Sem denotar um recorte temporal ou uma contextualização que ancore o filme no mundo em que vivemos, as violências abordadas ali são paralelas ao que lemos no noticiário.
Um exemplo disso é a própria BlackWoman. Interpretada pela estreante Mwajemi Hussein, atriz congolesa que escapou de seu país em meio a um conflito civil e passou por um campo de refugiados na Tanzânia até conseguir abrigo na Austrália, a personagem enfrenta as provações em seu caminho como quem não tem escolha a não ser perseverar. A produção não traduz seus poucos diálogos – presentes nos raros momentos em que ela não está sozinha -, mas palavras não são necessárias para mostrar a determinação e a resiliência da caminhada, cheias de emoção a cada gesto ou passo dado.
Ao final, porém, a mensagem se amplifica – ou cai por terra. Sem mudar a mesma realidade que a colocou em uma jaula para morrer no deserto, BlackWoman retorna para o local de onde veio, abandonando os resquícios de luta que passaram pelo seu caminho. Talvez a batalha seja continuar viva ou, ainda, apenas ceder. Talvez a fábula seja conformista, apenas um mero retrato de uma realidade em que não há como vencer.
As possibilidades da trajetória se revelaram piores do que a morte. Não há sentido em lutar se não houver como vencer? A Sobrevivência da Bondade recusa o que seu próprio título propõe e escancara um mundo de violências – e, se houver um significado por trás de todas elas, cabe ao espectador decidir. Ainda que o ritmo não seja arrastado, a sensação final é que uma hora e meia se estendem, em golpes duros de absorver. Porque, se a bondade existe, ela não sobreviveu.