Ayra Mori
“Se ele apenas se repete, como pode ser sincero?”. Entre galinhas, conversas, álcool, carne, maçãs, gatos, câmeras de vigilância, montanhas, salas de cinema e até o oceano, Hong Sang-soo inaugura mais um capítulo de sua contínua série cinematográfica com A Mulher que Fugiu, presente na Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Acompanhando a crônica contemporânea de Gam-hee, uma mulher que decide visitar três amigas nos arredores de Seul, são nas variações, simples ou não, que o cineasta sul-coreano encontra recurso para remodelar sutilmente cada nova história, ao mesmo tempo que caminha por repetições.
A Mulher que Fugiu (Domangchin Yeoja, no original) é construída por três blocos e três visitas: Young-soon (Seo Young-hwa), divorciada que gosta de jardinagem e vive com uma colega; Su-young (Song Seon-mi), artista amarrada por dois romances desventurados; e Woo-jin (Kim Sae-byuk), uma amiga distante que trabalha em um pequeno cinema. A protagonista é Gam-hee – interpretada pela extraordinária musa do diretor, Kim Min-hee –, uma esposa aparentemente feliz que pela primeira vez, após 5 anos de casamento, passa três dias distante do marido que viaja a negócios.
A princípio, a narrativa parece simples – até demais. As personagens são comuns, os eventos ordinariamente corriqueiros. Paira sobre o drama um naturalismo improvisado que preserva a autoria consagrada do Cinema de Sang-soo. E, através de um enquadramento minimalista, põe-se em foco duas pessoas dialogando frente a frente, numa perspectiva que quase torna o espectador parte das cenas, como um observador inapto desse universo silenciosamente acinzentado.
Contudo, por trás dos três longos diálogos, inicialmente banais, são aflorados uma sucessão de autoavaliações suavemente exteriorizadas pelas expressões faciais da protagonista. “Pessoas apaixonadas devem permanecer juntas”, ela afirma repetidamente para as amigas e, de certa maneira, para si mesma enquanto encara vagamente o vazio. Nada é declarado. Seja por meio de um toque de mão singelo, seja mediante um sorriso torto compartilhado, é na delicadeza das performances que são transmitidos ternos momentos de conexão humana genuína, ainda que breve.
Esses instantes sublimes ainda são revestidos por camadas humorísticas de um zoom dramático impagável que dilata as dimensões das relações expostas em tela e, gradativamente, reforça a densidade presente nas simplicidades da vida dessas mulheres. Assim, extraindo sentido das situações triviais do cotidiano, o caráter insólito de The Woman Who Ran enfrenta as realidades de seu tempo, oferecendo retiro no familiar e, simultaneamente, nas estranhezas, encantando e surpreendendo.
Como descendente devoto do universo íntimo de Sang-soo, o drama continua ensaiando furtivamente as relações humanas, ao servir-se da mesma temática e estética formal comum do cineasta sul-coreano. O silêncio e a ausência de cor permanecem até os últimos momentos do filme, quando Gam-hee, ou melhor, Kim Min-hee, pessoa, encara o horizonte do oceano no ecrã – primeiro preto e branco, agora, colorido. E mirando os fantasmas do passado, A Mulher que Fugiu retorna à praia, sozinha; dessa vez, com a quietude pacífica do mar, das cores, do som.