Júlia Paes de Arruda
Brooklyn, 1986. Lionel Richie e Madonna bombavam nas rádios com seus grandes sucessos. Ronald Reagan era presidente dos Estados Unidos. Todos ainda estavam angustiados com a passagem do Cometa Halley. É nesse cenário que John Hughes aposta suas fichas em A Garota de Rosa Shocking, após o grande sucesso de Gatinhas e Gatões. Completando 35 anos, o filme continua a encantar pela fórmula carro-chefe do produtor, mesmo que seu método de trabalho seja muito duvidoso.
Sendo um dos primórdios dos clichês adolescentes, a história gira em torno de Andie (Molly Ringwald), uma jovem pobre que tem uma paixão por Blane (Andrew McCarthy), o garoto popular e rico da escola. Quando ele a convida para sair, os dois entram num relacionamento reprovado por seus amigos, principalmente por causa das diferenças sociais do casal. Inclusive, um dos mais próximos de Blane, Steff (James Spader), afirma que “se você se amarra em brega, não traz pro nosso grupo não” ao ver o melhor amigo se apaixonando pela “cafona”. A personagem de Molly é esforçada, independente, talentosa e esperta. Mas no fundo, como toda garota padrão dos filmes do gênero, sonha em encontrar seu príncipe encantado para acompanhá-la no emblemático baile de formatura. O conselho de amiga que eu dou para ela é CORRE!
É estranho notar que Andie não é estúpida o suficiente para se rebaixar e cair nos braços do típico nice guy Steff, até porque, como ela mesma diz, tem um bom gosto. Contudo, é inocente o bastante para se encantar por Blane, o cara lindo e nada carismático que, na verdade, parece mais o Sam Claflin em Branca de Neve e o Caçador – estando ali para preencher espaço. E, ainda por cima, tem o amigo stalker Duckie (Jon Cryer) que se iguala a uma pedra no sapato sem a dose sombria e extrema de Joe Goldberg. Pelo menos, seu papel serviu como alívio cômico.
John Hughes, grande nome dos filmes oitentistas, mantém a mesma fórmula da rivalidade entre populares e esquecidos, apoiada principalmente na diferença de classes sociais. Um dos seus maiores sucessos, O Clube do Cinco, maximiza essa rixa através dos estereótipos dos personagens: a patricinha e o atleta versus o nerd e os esquisitos.
Em A Garota de Rosa Shocking, esse antagonismo deriva da condição dos protagonistas. Andie se desdobra entre casa-escola-trabalho para se sustentar junto com seu pai, um homem deprimido e insatisfeito com o abandono da esposa. Blane é o cara que vive embaixo das asas dos pais ricos, cansado e desgostoso com a sua vida. Isso é bem nítido na própria caracterização dos personagens: enquanto ele veste roupas sob medida, ela reforma trajes e usa sapatos de segunda mão. A situação dela é mais evidente ainda na cena em que vai comprar um vestido de formatura e a vendedora a olha de cima a baixo, bem no estilo Uma Linda Mulher.
Por causa disso, a relação entre Andie e Blane é rasa, sem química e nitidamente forçada. Isso é mais explícito nas cenas de beijo entre os atores, que não transmitem o sentimento que o momento permitia. Então, o que poderia se tornar marcante para o filme, acaba sendo constrangedor e esquisito. Essa sensação também é consequência da falta de encanto de Andrew McCarthy, o qual viveu um personagem que encontra em Andie um motivo para se afastar da monotonia que é sua vida. Por isso, a trama precisa se sustentar num triângulo amoroso. Ainda mais porque Duckie e Blane possuem personalidades totalmente opostas que chamam a atenção de Andie, mesmo que de modos diferentes.
Duckie é aquele tipo de pessoa que estabelece uma relação de amor e ódio com o público. Ao mesmo tempo que é irritante e infantil, é dono das cenas mais engraçadas do filme. A devoção por Andie é o que o prende à história, mas ele teria certo destaque de qualquer forma com suas frases autênticas e espontâneas, sem falar da performance dramática de Try a Little Tenderness. Imprevisivelmente, acaba se tornando o mais sensato do trio. Seu amadurecimento é implícito, mas perceptível. Mesmo aborrecido com o amor não correspondido, Duckie defende a amiga e aceita que ela ama Blane, mesmo ele tendo “um nome desses”.
É irônico pensar que o filme foi lançado nas vésperas do Dia Internacional da Mulher já que John Hughes tem um método de trabalho controverso em relação a performances femininas. Os primeiros minutos de A Garota de Rosa Shocking são de Andie se vestindo. Em um dos frames, a câmera acompanha a garota colocando uma meia calça. Em outro, o foco está na personagem abotoando uma saia por trás, deixando à mostra uma parte da sua lingerie. É perturbador pensar que essas cenas seriam necessárias para compor a caracterização da garota, ainda mais por se tratar de uma adolescente de apenas 18 anos.
A definição de Iona (Annie Potts) também é uma questão relevante, ainda que subliminar, sobre o olhar masculino tanto do roteiro de John Hughes quanto da direção de Howard Deutch. Iona é a dona da loja de discos onde Andie trabalha e, apesar de ser independente, ela sempre é mostrada com roupas escuras e cabelos bem diferentões, dando aquele ar de esquisita presente em muitos filmes do gênero. Chega a ser incômodo aos olhos quando ela aparece com o seu vestido de formatura rosa bebê.
No decorrer da narrativa, Iona se mostra muito instável no quesito de relacionamentos, transitando entre encontros ruins e pretendentes diferentes. Seu passado é também mencionado, deixando lúcido que até com homens casados ela se envolveu. O ponto é que, segundo o que o enredo dá a entender, a mulher não se sente plenamente feliz e completa com seu negócio, necessitando de um homem que a satisfaça. É isso que Hughes e Deutch entregam para o público.
Não é a primeira vez que o produtor é criticado por sua visão misógina. A própria Molly Ringwald escreveu sobre a cena de assédio em O Clube do Cinco, na qual sua personagem Claire é tocada de forma inapropriada – mesmo que o público não veja – quando seu parceiro de cena Bender (Judd Nelson) fica embaixo da mesa em que ela está sentada e espia por baixo da saia da jovem. Ela cita, ainda, uma situação em Gatinhas e Gatões, a qual Caroline (Haviland Morris) acorda de ressaca com alguém que ela não conhece e que dá a entender que ambos tiveram uma relação sexual. Não tem como negar as problemáticas envolvidas com o legado dos clássicos oitentistas.
Ainda assim, depois de 35 anos, A Garota de Rosa Shocking é um marco para os mais aficionados por clichês adolescentes. Sua dose de comédia e romance somado ao clima dos anos 80 é digna de um espaço na lista de filmes estilo Sessão da Tarde, que já traz um ar de nostalgia por si só. Além disso, Andie é uma personagem ícone que merece reconhecimento por sua personalidade marcante e empoderada, mesmo que seu vestido rosa não fosse usado nas quartas-feiras.