Nathalia Tetzner
O cenário é um café-da-manhã entre esposa e marido. Ele conta de um amigo físico que mora nas construções góticas de Paris e estuda a estrutura da bolha de sabão. Ela se espanta com a possibilidade de alguém se dedicar em investigar algo que conhece desde seus primeiros anos de vida e que, por isso, sabe que não possui estrutura alguma. O tempo passa e quando o gato do casal sobe na mesa dela, finalmente há uma resposta para sussurrar: “a bolha de sabão é o amor”. Nascia nesse momento A Estrutura da Bolha de Sabão, uma coletânea de contos escrita pela dama da Literatura brasileira, Lygia Fagundes Telles.
Lançada originalmente em 1978 sob o título de Filhos Pródigos, a obra foi reeditada na década de 90 quando passou a carregar o nome do texto de maior sucesso. Em 2010, ela ganhou uma nova roupagem para uma série especial da editora Companhia das Letras. Porém, em meio às infinitas edições disponíveis no mercado, é o conteúdo que destaca a sua singularidade perante toda a bibliografia de Telles. Dessa vez, a autora conhecida por banhar os seus romances com o realismo convida o leitor para um mergulho na fantasia onde ele é sempre o último a desvendar as nuances.
“Inclinou-se para apanhar a bolsa que caiu. Catou vacilante o pente e o espelho, quis ainda alcançar o lápis que rolou no assoalho, desistiu do lápis, Ih!…Levantou-se apertando a bolsa contra o peito, a outra mão apoiada na maçaneta da porta. Respirou penosamente, a boca aberta.
Encarou a mulher. Tudo bem?
— Tudo bem. Adriana. Tenho é muita pena desse moço. Seu noivo. Casar com uma coisa dessas, imagine.”
Repleta de fluxos de consciências e ambientada com uma dose de tensão constante, a leitura de A Estrutura da Bolha de Sabão não é nem um pouco confortável, consequência natural da abordagem esférica da temática feminina, fator sempre presente nos escritos da autora. Banhados por uma atmosfera misteriosa, os oito contos remetem de alguma forma ao papel da mulher na sociedade. Seja na materialização de uma jovem cheia de rebeldia para a sua época ou na subjetividade presente em um diálogo entre dois homens, Lygia Fagundes Telles explora todos os tons da feminilidade com a genialidade de quem está acostumada a ser uma força em sua caminhada pessoal.
A terceira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras estudou Direito e Educação Física porque acreditava que não seria capaz de viver da Literatura e se negava a depender financeiramente de um matrimônio. Ela e todo o seu lirismo foram exceção em relação ao pós-modernismo, movimento literário que se deu início na década de 70, período em que a figura masculina ainda era a maioria entre os autores de grande apelo. Assim como Adriana em A Medalha, a filha subversiva à mãe e ao seu tempo farto de conservadorismos, Telles é também dona de uma trajetória transgressora e parece ter bebido da sua própria fonte para retratar com tanta fidelidade a angústia da personagem.
Encarregado de ser o texto mais perturbador da coletânea, O Espartilho faz com que o leitor se sinta sufocado pelo ambiente regrado da década de 40. Ana Luíza é o nome da protagonista que causa uma inquietação digna de filmes de terror como Mãe! (2017), em que o suspense psicológico reina. O olhar de despertencimento dela ao encarar o álbum de fotos de sua família, após finalmente descobrir a verdade brutal por trás das faces pálidas apertadas por espartilhos, é estarrecedor. A experiência é um ponto fora da curva do que a escritora costuma produzir e provoca uma metáfora sensível sobre o uso de cintas modeladoras e a prisão emocional que acarreta a trama.
Quase mitológicos, os contos A Testemunha e A Fuga começam e permanecem um mistério. Lygia Fagundes Telles nitidamente não se importou em deixar explícito o que cada figura de linguagem significa, há de se explorar as páginas para encontrar os sentidos do livro. De fato, a confusão mental de Miguel em busca de respostas e a insistência de Rolf em afirmar não saber de nada é, por si só, uma interessante bagunça de diálogos que acorrentam em um eterno ciclo não só os dois amigos, mas qualquer um que entra em contato com as linhas de Telles. Já no segundo texto, o clima de névoa é descrito com um intenso detalhismo que tem o poder de cegar e confundir Rafael e todo o público leitor.
“— Não vai me dizer, Rolf?
— Dizer o quê rapaz?
— O que aconteceu ontem.
— Ora, o que aconteceu! Mas então você não sabe?
— Não, não sei. Não me lembro de nada, nada.
— Mas como não se lembra?
— Não me lembro, simplesmente não lembro — repetiu Miguel torcendo as mãos muito brancas. Fechou-as contra o peito.”
Não há nada tão hipocritamente perfeito quanto uma coleção de páginas em que a existência de conjuntos geniais diminuem a sagacidade de outros. Esse é o caso de A Missa do Galo e Gaby, a releitura do clássico de Machado de Assis e a incoerente falta de ritmo em uma conversa de bar colocam os dois contos em uma posição menos inspirada em relação aos outros momentos de A Estrutura da Bolha de Sabão. Ambos são um exagero passional e, para o bem e para o mal, somente permitem concluir que não há conclusão. A dama da Literatura brasileira deixa neles o dito pelo não dito.
Em contrapartida, A Confissão de Leontina se consagra como o maior ato da obra. Longo e profundo, a narração em primeira pessoa relata o drama vivido por quem deixa uma cidade pequena em busca de oportunidades nas grandes capitais do país. Sempre incompreendida, a personagem principal do conto atrai todos os olhares para o seu infortúnio, o que consequentemente resulta no sentimento de identificação com o leitor. É fácil se emocionar com as palavras certeiras escolhidas pela autora, especialista em captar com excelência os aspectos do cotidiano urbano com o papel e a caneta na mão.
A Estrutura da Bolha de Sabão é, como uma coletânea de contos, a expressão artística de Lygia Fagundes Telles mais complexa e brilhante desde o lançamento de As meninas em 1973. Os recursos linguísticos utilizados no romance certamente continuaram a inspirá-la até a criação do conjunto de textos. Já, como um conto, A Estrutura da Bolha de Sabão se tornou maior do que si mesmo. Afinal, a quem interessa estudar a estrutura de uma bolha de sabão? A falta de explicações uma vez questionada ganha sentido com o término pungente da obra de Telles.
A dama da Literatura brasileira descobriu em vida que a bolha de sabão é o amor e estudá-la é fundamental. Ela, incoerentemente gentil e caridosa como as ondas do mar, compartilhou a descoberta com o mundo depois de um mergulho nas profundezas do fantasioso. Lygia Fagundes Telles faleceu em 2022 e, assim como fez em A Estrutura da Bolha de Sabão, a sua partida do mundo material somente pode significar que ela resolveu permanecer de vez ao lado da subjetividade da vida.