Gabriel Leite Ferreira
Ele chegou. O aguardado sucessor do maior disco de rock brasileiro desde Ventura, do Los Hermanos. Vocação, quinto álbum de estúdio da Lupe de Lupe, começou a ser divulgado há seis meses, no dia 17 de maio, data em que o clipe de “O Brasil Quer Mais” foi postado no YouTube. Os quase 9 minutos da canção desafiam o que se conhecia da banda mineira até aquele momento: o vocalista e guitarrista Vitor Brauer falando sobre o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Luis Inácio “Lula” da Silva, o assassinato de Marielle Franco e as denúncias de abuso sexual no meio artístico com um fundo barulhento; um textão de Facebook musicado. Para onde a Lupe estava apontando?
Lançado em 2014, o duplo Quarup já é clássico da música brasileira contemporânea. Brauer, Renan Benini, Gustavo Scholz e Cícero Nogueira resumiram o zeitgeist da juventude perdida do país em uma obra que, se não é totalmente coesa, guarda momentos memoráveis o suficiente para justificar sua duração exagerada. Perguntei a Vitor, em entrevista pelo Curious Cat, se Vocação pode ser considerado um novo ciclo para o grupo, ao que ele respondeu que “todo disco é um ciclo completo.”
A despeito disso, Vocação inspira transição. É a mesma banda de rock barulhento a la Sonic Youth e Legião Urbana que compôs canções inocentes (“O Arrependimento”), amargas (“Fogo-Fátuo”, “Você é Fraco”, “Eu Já Venci”) e nostálgicas (“17”, “SP (Pais Solteiros)”), mas é uma banda diferente. Paradoxal? A faixa de abertura, “Frágua”, dá conta de exemplificar essa evolução a princípio tímida. Em uma letra toda metafórica, atípica para a verborragia simples do grupo, Brauer discorre sobre terra, água e fogo em cima de um instrumental com fortes influências de pós-rock; chega a ser ritualístico.
Das dez canções da setlist, sete tem mais de 6 minutos. Sobre isso, Brauer afirma que a banda queria experimentar com formatos maiores “pra gente se divertir mais e pra vocês também receberem algo diferente.” O resultado foi um disco tão ou mais versátil que Quarup em que o quarteto dá vazão a ideias mais complexas, mas nem por isso menos simples. Não faz sentido? Explico melhor. Desde sempre a Lupe de Lupe aposta na ambição aliada a uma estética totalmente punk. Eles se orgulham em dizer que não cantam ou tocam bem: limitações técnicas são combustível. Contudo, é possível dizer que, musicalmente falando, Vocação é seu álbum mais maduro. “Midas”, cantada pelo baixista Renan, segue com o clima ritualístico de “Frágua”, porém, dessa vez, com uma letra tão parnasiana quanto clara.
Em 1964, um povo acuado, se integrava ao protestar
A uma nova carreira que servia a bandeira e ao regime militar
Mas isso não valeu nada quando desolada, se voltou a gritar
Nas ruas, nas praças, as raças aclamavam mais um voto popular
Junto de “O Brasil Quer Mais”, essa é a faixa mais literal, e ambas dão a certeza de que o quinto álbum da Lupe não poderia ter sido gravado em outro tempo. Óbvio que há referências do passado e do presente, mas a síntese é extremamente atual. De alguma maneira, “Midas” remete a “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, o clássico anti-Ditadura de Geraldo Vandré, gravado em 1968, ou, ainda, a “Como o Diabo Gosta”, de Belchior: todas trazem uma carga de urgência, ainda que a composição da Lupe seja bem mais pesada que as outras duas. A História é cíclica, não é mesmo?
Vitor não fornece nenhuma explicação especialmente profunda sobre a forma como nossa caótica realidade sociopolítica guiou o disco. Ele se limita a dizer que a obra dialoga com ela “de todas as formas”, e que “precisamos de uma saída que saia do plano das ideias para o plano físico.” Impossível dizer que a música da Lupe seja essa saída; é, porém, um começo. Na supracitada “O Brasil Quer Mais”, o guitarrista desnuda as contradições da esquerda brasileira e afirma que os acusados de abuso sexual precisam se sacrificar para compensar das mulheres abusadas. “Eu te mostro o caminho, mas é preciso coragem para se sacrificar”, ele diz perto do final da faixa.
A pretensão confessa de Vitor Brauer é o elemento mais importante da arte do mineiro de Governador Valadares. Sua banda é punk, mas suas referências não são nada modestas. James Joyce, Kanye West, Raduan Nassar, Kate Bush, William Shakespeare e Joanna Newsom convivem em um mesmo vórtex, sem aparentemente se colidirem. Ele pensa e se acha grande.
Se eu fosse comparar a Lupe de Lupe a algum grupo clássico do punk rock, citaria o The Clash: quatro músicos que começaram tocando o básico e terminaram gravando discos imensos com influências de reggae, disco, soul e funk, sempre com um discurso ativista forte. Ainda que seja difícil classificar a Lupe como uma banda “ativista”, está claríssimo que todos os integrantes são alinhados à esquerda. Não à toa, a primeira canção de Quarup, “O Futuro é Feminino”, é praticamente uma homenagem adiantada a Dilma Rousseff: “Porque o futuro é feminino / Minha presidente é uma mulher / Meu coração é brasileiro.”
Nos três anos que separam Quarup e Vocação, um integrante se formou em odontologia e outros dois se mudaram para trabalhar. Em “Vejo Uma Lua no Céu”, o baterista Cícero vocifera “De 2013 a 2016 / Eu quase não lembro, o que foi que a gente fez? / Entre o seu curso e a formatura / Tudo misturado e a Copa do Mundo.” É o sentimento frustrante das transições da vida: ensino médio e faculdade, faculdade e emprego, adolescência e vida adulta. A chegada da vida adulta é o cerne do novo disco da Lupe de Lupe: até 2014, eles eram jovens adultos; agora, a idade adulta bateu na porta em toda sua plenitude.
Isso se reflete na dinâmica interna da banda. Nenhum membro mora na mesma cidade (o guitarrista Gustavo Scholz, inclusive, reside há dois anos na Austrália e acabou de ter uma filha). Só Vitor tira seu sustento da música, e afirma ser algo mais fácil de realizar com plataformas como Spotify, OneRPM e Apoia.se. Ele não vê muito problema na distância geográfica: “Se ele [Gustavo] vier aqui, a gente faz uma turnêzinha de 10 shows.” É assim que eles funcionam – e assim continuarão por muito tempo. Quando indagado sobre shows em grandes festivais alternativos, como Lollapalooza, Balaclava e Popload, é taxativo: “Não sei se vai ter espaço porque não é do meu interesse (…). A Lupe de Lupe é uma banda punk (…). Prefiro um lugar lotado e pequeno do que um lugar aberto com milhares de pessoas que nem conhecem as minhas músicas.”
Essa postura talvez seja o grande diferencial dos mineiros quando comparados com Boogarins e Carne Doce. A relação banda-plateia é a mais próxima possível (a entrevista ter sido feita via uma rede social é outra prova disso). Vitor agradece à Ludovic, notória banda do underground paulista, pela confiança. “Ludovic e o Jair [Naves, vocalista da banda] influenciaram muito a banda na questão de que em uma época eles eram a melhor banda do país por pura atitude e qualidade musical, sem o apoio das grandes mídias (…). Essa confiança a gente deve ao Ludovic e ao Jair (…). As bandas punks do underground precisam apenas da música e da atitude para serem a melhor banda do país, não precisam de redes sociais, popularidade, etc.”
Difícil discordar dele considerando que a Lupe de Lupe já viajou o país inteiro sem apoio de nenhuma gravadora, na turnê adequadamente batizada Sem Sair na Rolling Stone. Entre 12 de julho e 4 de setembro de 2015, eles percorreram 23 cidades de 12 estados diferentes de carro. Que banda de rock faz isso hoje em dia aqui?
Trecho do release do álbum: “Vocação, que vem do latim vocare, é comumente interpretada como o chamado de Deus na nossa vida. (…) um disco que conta sobre os conflitos para se seguir o chamado de Deus em todas as vidas.” Essa universalidade talvez explique o conteúdo lírico enigmático que, segundo Vitor, foi uma escolha da banda por conta da duração das músicas. “Tem de ser uma coisa mais sobre o mundo em geral”, diz, “uma viagem espiritual mais do que física, mas que diga sobre o plano físico das coisas ao mesmo tempo.”
É isso. A Lupe de Lupe canta sobre vidas normais, vidas vulgares, as nossas vidas – por isso se tornou a maior banda de rock brasileiro do momento. Isso, claro, dentro de nichos, pois o mercado já não comporta mais modismos generalizados. Eles preferem assim. E nós também. Mantenhamos, então, os ouvidos abertos, que a Lupe veio, definitivamente, pra ficar.