Treta revela que a paz interior é mais uma jornada do que um destino

Cena da série Treta. Nela estão os dois personagens principais interpretados pelos atores asiáticos americanos Steven Yeun e Ali Wong. Um está à frente do outro enquanto se olham em desafio. Ao fundo uma casa bem ornamentada com uma obra de arte pendurada ao centro. Steven, que interpreta Danny Cho, está segurando uma taça de champanhe enquanto veste uma camisa preta. Ali Wong está com um macacão branco e cabelos na altura do queixo olhando para cima.
Steven Yeun tranquilizou Ali Wong antes das filmagens de Treta, dizendo que sabia tanto quanto ela; a atriz supôs que, sem isso, talvez não tivesse sido capaz de se apresentar como fez (Foto: A24)

Henrique Marinhos

Treta, como comédia dramática, beira ou até ultrapassa o humor ácido ao acompanhar um surto de raiva no trânsito entre duas pessoas, que acabam deixando isso tomar conta de suas vidas. Criada pelo hilário Lee Sung Jin (Thunderbolts) e produzida pela A24, uma das produtoras mais aclamadas do Cinema independente norte-americano, a obra reúne os talentosos Steven Yeun (Minari – Em Busca da Felicidade) e Ali Wong (Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa), protagonistas e produtores executivos que, durante as filmagens, elogiaram um ao outro por seu senso de humor e atuação.

A série explora as consequências psicológicas, sociais e morais de um simples gesto de fúria que se transforma em uma obsessão e reflete a realidade. Amy Lau (Wong) e Danny Cho (Yeun) são dois estranhos que se envolvem no que poderia ser apenas um desentendimento passageiro, mas que se transforma em uma espiral de vingança, paranoia, violência, beleza, crítica e busca pela libertação, afetando todas as áreas de suas vidas e das pessoas ao seu redor.

Danny Cho retrata a frustração de muitas pessoas que se sentem presas em uma vida sem sentido e sem realizações. Ele é um empreiteiro fracassado, incapaz de concluir seus projetos ou manter relacionamentos estáveis. Além disso, precisa sustentar seu irmão Paul em Los Angeles e trazer seus pais da Coreia do Sul. Sentindo-se um perdedor sem controle sobre seu destino, o personagem busca na raiva uma forma de escapar da realidade e se sentir vivo, projetando em sua rival toda a insatisfação e ressentimento.

Por outro lado, Amy Lau se sente solitária e incompreendida. Após o incidente, ela desenvolve uma dependência por adrenalina – ou por Danny – que a faz perder o controle e a razão. Apesar de ter um negócio de plantas bem-sucedido e de finalmente ter recebido uma oferta para ter mais tempo livre com família, a milionária excêntrica Jordan, interpretada por Maria Belo, a leva ao limite e mantém incertezas quanto à proposta: seu tão esperado (e merecido) lugar fora da classe trabalhadora, fruto de cinco anos de intensa dedicação e fingimento.

 Foto da equipe da série Treta. Todos estão com roupas de gala em frente a uma parede com vários escritos repetidos das palavras “Netflix” e “Beef”. Todas as vinte e duas pessoas estão acima de um tapete vermelho e são majoritariamente asiático-americanos.
Ali Wong, Steven Yeun e o criador de Beef, Lee Sung Jin, trabalharam juntos na série animada Tuca & Bertie como dubladores e escritor, respectivamente (Foto: A24)

Ao longo da trama de Beef, a rivalidade entre os protagonistas é explorada através de diversos temas que permeiam suas vidas, tais como isolamento, violência, competição, inveja, hipocrisia e falta de empatia. Embora ambos tenham sua parcela de culpa em relação aos eventos, sua conexão e raiva se fortalecem à medida que se enfrentam. Uma junção ao aprofundamento de suas nuances, que completam o espetáculo, nos levam a entender ou questionar suas motivações, propósitos e desejos. Eles são, ao mesmo tempo, heróis e vilões de suas próprias histórias, buscando uma forma de libertação e redenção.

A obra também é formada por um elenco majoritariamente asiático-estadunidense, o que é raro e importante na indústria audiovisual. Segundo o showrunner, em entrevista ao New York Times, isso não foi uma decisão intencional, mas uma consequência natural de explorar os mundos desses personagens, que têm origens e culturas diversas, mostrando a complexidade e humanidade dos papéis asiáticos que, em Treta, não são estereotipados ou marginalizados. Em junção aos desdobramentos que a rixa principal desencadeia, a escolha do cast é um bônus, permitindo núcleos e histórias paralelas bem encenadas por um elenco de apoio forte, com nomes como Ashley Park, Justin H. Min, Andrew Santino e David Choe.

Cena da série Treta. Nela estão os protagonistas asiático-americanos Stephen Yeun, que interpreta Danny Cho, e David Choe, que interpreta Isaac, primo problemático de Danny. Na imagem, Isaac está segurando o ombro esquerdo de Danny enquanto o explica algo enquanto andam. Ambos estão em movimento. O cenário é diurno. Danny veste um suéter escuro e seu cabelo é curto. Isaac veste um cinto ornamentado com detalhes em dourado e uma camiseta social despojada, colares grandes e diversos, enquanto seu cabelo é longo e está preso, apresentando movimento pelo vento da cena.
Nos Estados Unidos, David Choe tem um cadastro repleto de detenções e acusações, sobretudo ligadas a agressões e posse de drogas (Foto: A24)

Apesar da qualidade técnica e artística da obra ser indiscutível, o clima caótico e surreal acaba não sendo tão impactante quanto poderia. A exemplo do clímax de cada episódio, que acaba destoando dos elementos que o constroem: quando a bomba está prestes a explodir, no auge da tensão, descobrimos que, na verdade, era o temporizador de um forno. Essa quebra de expectativa diminui a potência da narrativa em alguns momentos. No entanto, pode-se argumentar que essa lentidão auxilia na construção da narrativa completa, também aproximando a obra da realidade imprevisível em que vivemos e escalonando toda tensão em direção ao episódio final, Figuras de Luz.

Baseada, ironicamente, em fatos reais, Lee Sung Jin revelou à TODAY uma discussão no trânsito que o inspirou: “Estou indo para casa e essa pessoa está na minha frente. Se formos em direções diferentes, eu não ia segui-la. Mas acabamos indo na mesma direção […] Foi tipo uns 30 ou 40 minutos. Então, tenho certeza que ele achou que eu fosse um maluco descontrolado o perseguindo“. Felizmente, ele decidiu canalizar esse sentimento em um projeto criativo, autêntico e ousado como Treta.

Obra de arte feita para abertura da série. A obra é composta por uma mulher de feição triste enquanto senta em uma borda laranja com seus pés na água, a pintura aparenta ter sido realizada com aquarela e acima dela, cobrindo grande parte do centro, está o escrito “Beef” em letras grossas em caixa alta com texturas granuladas.
Segundo Lee, a citação “Não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas tornando a escuridão consciente” de Carl Jung guia a série de modo geral e intitula o último episódio (Foto: A24)

A série é um dos sucessos da A24, responsável por filmes como Moonlight (2016), Lady Bird (2017) e Hereditário (2018). A empresa é conhecida por lançar obras de baixo orçamento, mas de alta qualidade artística, que costumam ser premiadas e elogiadas pela crítica especializada, como Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022). Apesar de apresentar um know-how impressionante na produção de filmes, sua aventura no universo da Televisão retém grandes sucessos sem tantas tentativas, como em Euphoria, que quebrou recordes de audiência na HBO Max.

A trilha sonora é nostálgica e remete aos anos 1990 e 2000. A supervisora musical Tiffany Anders assumiu a tarefa de encontrar músicas que combinem com o tom da série, sem tornar as coisas muito óbvias. Ela inclui canções de artistas como Bush, Christina Aguilera, Kelly Clarkson, The Smashing Pumpkins e Hoobastank, criando contrastes muito sutis, talvez até demais ao demonstrar a contraposição e rivalidade entre os protagonistas. Em momentos como a introdução do caos e a sátira que se seguem na sequência com Liquid Dreams do O-Town, no episódio piloto, fazem tudo valer a pena.

Cena da série Treta. Nela está a protagonista Amy Lau, interpretada por Ali Wong, sentada no chão, ao centro, enquanto segura uma arma no meio de suas pernas, ela olha com tédio a frente e veste roupas beges com uma de suas mangas abaixadas. O ambiente se assemelha a uma lavanderia, com um banco, cesto de roupas trançado, tapete e parede marrons. Logo acima, duas janelas estreitas verticais uma de cada lado. Em que deixam entrar a luz ao cômodo.
O episódio de The Sopranos, em que Richie Aprile aponta uma arma para a cabeça de Janice enquanto faz sexo, inspirou a cena em que Amy se masturba com o objeto (Foto: A24)

A precisa fotografia da trama foi feita por Larkin Seiple, mesmo diretor de EEAAO. Já a edição minuciosa e direta foi realizada por Harry Yoon, Nat Fuller, Laura Zempel e Jordan Kim, que trabalharam em séries como The Walking Dead, Better Call Saul e Watchmen. O resultado da união desses profissionais, especialmente, reflete que não basta uma vida regida por paletas pastéis e extrema organização, como Amy procura para alcançar a felicidade, mas justamente o espaço a ser dado ao que é inerente à nós: a ira, a agressividade, a frustração e a raiva. Não apenas performances sociais sufocantes que o mundo nos apresenta, quase sem opções.

Em um artigo da Netflix, os criadores procuram explicar a pretensiosa escolha de intitular cada episódio com citações e obras de arte que fazem referência a filmes, poemas e discursos famosos. No segundo episódio, por exemplo, o título O Êxtase de Estar Vivo é referente à citação de Joseph Campbell, que diz: “Eu não acho que o sentido da vida é o que estamos buscando. Eu acho que é a experiência de estar vivo […]”. Toda essa construção complexa e complementar ao que a narrativa apresenta é extremamente perigosa, afinal, se fosse injustamente boicotada por uma trama tão surpreendente, em termos de propósito, a adição dessas obras se tornariam munição ao inimigo.

Cena da série Treta. Nela estão os dois personagens, Danny Cho, interpretado por Steven Yeun, e seu irmão, interpretado por Young Mazino. Ambos estão em seus quartos, enquanto a visão que nos é mostrada é de suas portas lado a lado com a divisão de paredes. No quarto de Danny, ele está sentado no chão e é iluminado por luzes brancas quentes, enquanto no quarto ao lado seu irmão está sentado na cadeira do computador com luzes azuis e roxas.
Steven Yeun se tornou o primeiro asiático-estadunidense indicado ao Oscar de Melhor Ator em 2020 por Minari: Em Busca da Felicidade (Foto: A24)

Assim, Treta nos convida a refletir sobre como lidamos com nossos sentimentos negativos e com o dos outros, em um mundo que parece cada vez mais complexo e hostil. Isso, nos apresentando personagens que se deixam levar por impulsos destrutivos, mas que também buscam por algo mais autêntico e humano em suas vidas. A obra nos faz questionar se há outras formas de expressar e acolher a nossa agressividade, sem cair na armadilha de um sistema que se alimenta das nossas angústias e sofrimentos. Sem uma segunda temporada confirmada, mantemos o sentimento de esperança de que algo tão bom possa melhorar e o medo de que percam a essência que faz a série ser especial.

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