Em Suspiria, é temporada da bruxa

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. Na imagem, sete mulheres estão realizando movimentos com seus braços e pernas, em uma dança contemporânea. Cada uma aponta seus braços para uma direção. A câmera as visualiza de baixo para cima. Elas estão seminuas e utilizam apenas trajes feitos de fios vermelhos. Os fios caem por seus corpos de forma que lembram sangue. No centro do grupo está Susie Bannion, personagem de Dakota Johnson. Dakota é uma mulher branca, de traços finos e cabelos ruivos, um pouco abaixo dos ombros. Ela é a única que olha para frente. A luz na imagem é fraca, tornando o cenário atrás das mulheres escuro.
Em Suspiria: A Dança do Medo, Guadagnino recria e amplia os acontecimentos e significados da obra de Dario Argento (Foto: Amazon Prime Studios)

Mariana Nicastro

Uma renomada companhia de dança alemã guarda um segredo: suas dançarinas são parte de um coven. Suas coreografias, rituais. E sua mais nova aluna, seria ela uma presa fácil? Ou uma bruxa em ascensão? Suspiria: A Dança do Medo é uma contemplação às bruxas contemporâneas através de um Terror psicológico, folk e gore

Lançado no Brasil em 11 de abril de 2019, pela Amazon Prime Studios, o filme é dirigido por Luca Guadagnino. O diretor, aqui, está distante do subgênero do – indicado quatro vezes ao Oscar Me Chame pelo Seu Nome (2018). Contudo, a sua habilidade de criar atmosferas instigantes permanece intacta. Comum, tanto ao seu romance dramático, quanto ao seu horror sombrio. 

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. A imagem mostra um jantar e a câmera foca em um pedaço da mesa, mais especificamente, na pessoa sentada em uma das pontas. Trata-se de Susie Bannion, personagem de Dakota Johnson. Dakota é uma mulher branca, de traços finos e cabelos ruivos, um pouco abaixo dos ombros. Ela olha para o outro lado da mesa com uma expressão segura e indecifrável. Ela tem uma sugestão de sorriso no rosto. As mulheres sentadas de ambos os lados de Susie são mais velhas e estão conversando entre si, rindo.
Dakota Johnson se entrega ao papel e representa uma Susie intrigada, porém controlada, que dança conforme a música (Foto: Amazon Prime Studios)

Inicialmente pensado como uma releitura da obra original, Suspiria (1977), este filme em muito se assemelha e, ao mesmo tempo, em muito diverge, de seu antecessor. Um clássico setentista, o primeiro trata-se de um giallo italiano. Repleto de estilo, personalidade e identidade, assim como seu diretor, Dario Argento. É uma obra única, cheia de luzes e cores, uso dos sonhos e atuações novelescas, que envelhece como vinho. 

A premissa inicial de ambos os filmes permanece a mesma: Susie Bannion (Dakota Johnson, na obra mais recente) é uma garota estadunidense que viaja até Berlim para ingressar em uma grandiosa companhia de dança. Convivendo diariamente no local, a protagonista se vê presa e perturbada por um ambiente cheio de mistérios, acontecimentos, pessoas estranhas e maus pressentimentos.

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. A foto mostra duas mulheres observando algo à direita, escoradas em uma parede. A da frente é Sara Simms, personagem de Mia Goth. Mia é uma mulher branca, de cabelos dourados que vão até abaixo dos ombros. Ela olha para a direita, preocupada. Ao lado dela, e um pouco mais atrás, está Susie Bannion, personagem de Dakota Johnson. Dakota é uma mulher branca, de traços finos e cabelos ruivos e longos. Susie olha na mesma direção de Sara enquanto segura em seus braços.
Suspiria (2019) abrange sugestões, referências e temáticas em segundo plano, que permitem várias interpretações da obra [Foto: Amazon Prime Studios]
Apesar de dividirem a trama principal, logo, as obras correm por caminhos bastante distintos. Suspiria de 77 pende para um surrealismo e um estilo vibrante, com muitas cores e suspense envolvidos. Enquanto isso, o Suspiria de 2019 é mais sóbrio, sério, e se utiliza muito do Terror físico para intercalar com a trama mais lenta e sugestiva.

As danças, elemento fundamental para a história, também são parte da linguagem do filme. Elas trazem um misto de beleza, drama, violência e incômodo. Inseridas no contexto, qualquer coreografia passa a sensação de que algo assustador está por vir.

A sugestividade e a curiosidade são constantes na obra e alimentam o ritmo da trama principal. Já as secundárias, por vezes sofrem um pouco com a lentidão e falta de uma dinâmica instigante e reveladora em seu processo, importantes em um plot de investigação.

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. A foto mostra a personagem Patricia deitada em uma superfície acolchoada, de lado. A câmera está bem próxima de seu rosto. Patricia é interpretada por Chloë Moretz. Chloë é uma mulher branca, de cabelos curtos e castanhos, que caem bagunçados sobre seus olhos. Ela parece assustada.
“… Patricia define a história e te joga na tensão, medo e tormento do que você está prestes a ser submetido” diz Chloë Grace Moretz sobre sua personagem (Foto: Amazon Prime Studios)

Contudo, o longa é capaz de ressignificar a história e somar interpretações subjetivas à temática proposta por seu antecessor. Liberdade, identidade e aceitação são interpretações do todo, que se utilizam do subgênero das bruxas para transmitir uma mensagem. Trata-se, afinal, de um aspecto muito comum no folk da atualidade, presente em A Bruxa (2016) e em Midsommar (2019).

Nesse sentido, a bruxa, a mulher, é apresentada como um ser marginalizado, injustiçado na realidade a qual pertence. Essas obras solucionam essa questão com identificação e pertencimento, seja por meio da força, uso de poderes ou acolhimento por semelhantes. Em Suspiria, a trajetória de Susie não é diferente.

Além de apresentar elementos feministas, o filme também tem um forte caráter queer. A direção de Guadagnino transborda de olhares sensíveis para essas temáticas, ainda que encabeçada por um homem. Seus filmes têm características que destoam de perspectivas e representações heteronormativas. Seja na exploração de personagens, ou ideias, como no caso da liberdade e aceitação estimuladas na trama.

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. A foto mostra Susie Bannion enquanto dança. A câmera está bem em cima da cabeça de Susie, observando-a de cima para baixo. Susie é interpretada por Dakota Johnson. Dakota é uma mulher branca, de traços finos e cabelos ruivos e longos, presos por uma trança. Ela olha para cima, em direção à câmera. Susie está com os braços levantados e as mãos enquadrando o próprio rosto, em formato de “V”.
Susie passa por uma transformação perturbadora e inesperada, ou sempre esteve destinada àquele local? (Foto: Amazon Prime Studios)

Quanto ao horror físico do longa, o uso de cenas chocantes é crescente, com sangue, fraturas e situações tão visualmente bizarras, que impactam e fazem com que algumas cenas instalem-se na memória por muito tempo. A montagem de Walter Fasano é rápida, com toques teatrais e criativos. Como em um solo de dança de Susie que desencadeia, simultaneamente, um ritual brutal. 

A fotografia de Sayombhu Mukdeeprom ganha tons frios e sombrios. A Berlim representada é apática e cinzenta. O longa carece de cores, com exceção do vermelho. Essa cor está cada vez mais presente, de forma progressiva, até brilhar durante o terceiro ato, representando sangue, violência e a libertação do coven

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. A foto mostra, de lado, Susie e Madame Blanc realizando uma coreografia. Nela, elas estão de frente uma para a outra e apoiam seus braços uma na outra, enquanto cobrem suas bocas com uma das mãos. Susie é interpretada por Dakota Johnson. Dakota é uma mulher branca, de traços finos e cabelos ruivos e longos. Ela usa um kimono rosa claro. Já Madame Blanc, é interpretada por Tilda Swinton. Tilda é uma mulher branca, de cabelos castanhos-claros e longos. Ela está levemente de costas para a câmera. Elas estão em uma sala escura, com uma janela fechada por cortina aos fundos e um tapete com desenhos geométricos aos seus pés.
A fotografia do longa carece não apenas de cores, como de luz, contribuindo para uma atmosfera sombria e contida (Foto: Amazon Prime Studios)

O grotesco também ganha vida na caracterização e maquiagens, seja de vítimas, ou de antagonistas. Quanto às últimas, Tilda Swinton é um fenômeno. Sempre atuando excepcionalmente em papéis exóticos e – mais de uma vez – como feiticeira ou maga, em Suspiria ela brilha e rouba toda a cena para si. Sua Madame Blanc é imponente e assustadora. 

Mesmo quando ela esboça simpatia para com Susie, a diretora da companhia aparenta guardar os mais terríveis segredos e planos. O destaque para a atriz ainda é intensificado pelo fato de ela ter, não um, mas três papéis dentro do longa. Os três exigem de si personalidades e características completamente diferentes: Blanc, o Dr. Jozef Klemperer e Helena Markos, a líder da companhia – e do coven.

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. A foto mostra uma mesa de jantar com taças de vinho e foca, principalmente, na figura que está na ponta da mesa. Trata-se de Madame Blanc, interpretada por Tilda Swinton. Tilda é uma mulher branca, de cabelos castanhos-claros e longos. Ela tem traços finos e marcantes e olhos pequenos. Ela olha para frente. Está séria, apoia um dos cotovelos na mesa e com a sua mão direita, segura um cigarro.
Swinton é uma atriz andrógina cuja aura artística, quase mística, está presente em todos os papéis por ela interpretados (Foto: Amazon Prime Studios)

O Dr. Jozef Klemperer é um psiquiatra judeu que atendia uma das alunas de Blanc (Chlöe Grace Moretz) e que, de forma paralela a trama principal, passa a investigar relatos de sua paciente, envolvendo a companhia de dança. A maquiagem é convincente, ainda que não passe despercebido o fato de que há algo de estranho em Jozef. 

Já Helena Markos é, em tese, a Mater Suspiriorum, bruxa suprema, ou como a chamam: The Mother of Sorrow (A Mãe das Dores). A construção misteriosa em torno de sua existência corrobora para seu papel, ainda que breve, porém muito significativo. Markos também aparece no longa de 77, em outro contexto e com outra personalidade.

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. A foto mostra o doutor Jozef sentado em uma poltrona enquanto conversa com alguém que está no canto direito e não aparece na imagem. Ele está em uma casa, com luz fraca e coloração cinza e apática. Jozef é um homem idoso, branco, de cabelos platinados e lisos, penteados para o lado. Ele usa um suéter por cima de uma camisa social e um casaco acinzentado por cima de tudo. Ele está sério e segura uma xícara de chá com sua mão direita. Ele é interpretado pela atriz Tilda Swinton, uma mulher branca, alta, com traços finos e marcantes, aqui cobertos por maquiagem.
A atuação de Swinton em três papéis distintos não foi divulgada logo de início, sendo revelada posteriormente em entrevistas (Foto: Amazon Prime Studios)

Sobre Markos, o longa dialoga em diversos níveis a respeito da dor, a partir da mitologia das Três Mães. Dario Argento desenvolveu sua famosa trilogia inspirado em um ensaio de 1845, de Thomas de Quincey. Esse ensaio tratava da história de Três Mães que acompanhariam a deusa romana Levana. Uma delas, Mater Suspiriorum, é a senhora dos suspiros, aflições e dores humanas. 

Considerando a trama da Mãe das Dores, o desfecho do longa é dominado pelo simbolismo, grandiosidade e pelo extremo horror visual, brutal e explícito. Susie enfim abraça seu destino, com aceitação e imponência. A atuação de Johnson é precisa e capaz de transmitir a calma e poder que emanam de sua personagem.

Fotografia do filme Suspiria, A Dança do Medo. A foto é inteiramente coberta por uma forte luz vermelha. Ela mostra, centralizada, uma figura monstruosa que rasteja no chão. Ela tem uma pele queimada, dedos longos e unhas afiadas. Os braços da criatura ocupam a maior parte da foto e sua cabeça está bem no topo, abaixada, como se ela fizesse uma reverência. Ela tem um rosto deformado e queimado, pouco visível pelo ângulo. E tem cabelos escuros e longos, com falhas no couro cabeludo.
O final da obra é um choque visual unido a um plot twist corajoso e subversivo (Foto: Amazon Prime Studios)

Todas essas questões tornam o filme excepcional no que busca transmitir e representar. A força, dores, papel e liberdade femininas são testadas, questionadas e abordadas em diversos aspectos do longa. Bem desenvolvidas, ou nem tanto, como no caso da história da mãe de Susie.

Somados, esses aspectos tornam Suspiria uma experiência inesquecível. O filme é capaz de penetrar na mente do telespectador, seja pelo choque, medo, irreverência ou reflexão. Ainda que siga os passos iniciais da obra original, esta caminha sozinha, tornando-se única e clássica. Assim, representando com beleza e brutalidade, dança e morte, o que é a figura feminina e a imagem da bruxa.

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