O Replay de Acabou Chorare e o legado dos Novos Baianos

Capa do disco Replay Acabou Chorare. Na esquerda, há um fundo alaranjado claro, com diversos copos, talheres, uma chaleira com tampa, um livro verde, um coador de café, um prato branco e pacote de papel, com açúcar. Na direita, o fundo é branco, com letras grandes onde é possível ler o nome do álbum.
Capa do Replay – Acabou Chorare (Foto: Carolina Vianna e Polar)

Marina Ferreira

“Acho que você nasce no Brasil, você tem que ouvir Acabou Chorare”. É com essa frase certeira e carregada de brilho no olho que Letrux abre o décimo vídeo da série Replay, traduzindo em pouquíssimas palavras a grandiosidade do álbum que é, até hoje, considerado pela revista Rolling Stones como o maior disco brasileiro de todos os tempos. Com um título dessa importância, é natural que Acabou Chorare, o clássico dos Novos Baianos de 1972, seja também um dos maiores influenciadores daqueles que trazem consigo a missão de manter viva a MPB, ou como recentemente intitulada, Nova MPB.

É justamente em nome dessa missão, e de mãos dadas com esses representantes da nova geração de artistas brasileiros, que a Som Livre em parceria com a Barry Company decidiu que seria uma boa hora para reviver o clássico e dar novas vozes a canções atemporais. Canções essas que atravessaram gerações e deixaram sua marca na memória brasileira, afinal, quem nunca se pegou cantarolando Preta Pretinha

Há um fundo vermelho, com uma tela em meia lua, com uma projeção de uma foto com diversas pessoas. Na frente, três pessoas sentadas em cadeiras. Na esquerda, Paulinho Boca de Cantor. É branco, e veste uma roupa preta e chapéu. Tem barba e cabelo médio. No meio, Baby do Brasil. É branca e veste uma roupa preta, botas compridas e coloridas e um chapéu rosa na cabeça. Seus cabelos são roxos e compridos. Na direita, está Pepeu Gomes. É branco e veste uma roupa preta e chapéu. Seus cabelos são pretos e escuros. No topo da imagem há uma letreiro luminoso escrito: Replay Acabou Chorare - Novos Baianos.
Os Novos Baianos em entrevista para o projeto (Foto: Reprodução)

Por sua riqueza sonora e coragem de explorar novos caminhos, Acabou Chorare pode ser interpretado não somente da forma como foi gravado, mas também imaginado a partir de todos os caminhos que poderiam ser seguidos em cada faixa. E isso permitiu ao diretor José Francisco Tapajós, responsável pelo projeto, a ousadia em escolher os artistas que levariam em frente esse legado, passeando pelo rock, reggae, pop, samba e até mesmo a percussão afro-beat. Graças a essa mistura, o resultado entregue foi nada menos que um clássico parte dois, um Acabou Chorare para a geração que vem por aí. 

A faixa de abertura, Brasil Pandeiro, foi entregue à banda Francisco El Hombre, conhecida por suas misturas de ritmos, entre os tipicamente brasileiros, as guitarras do rock n’ roll e as sonoridades mexicanas trazidas pelos irmãos Sebástian e Mateo Piracés Ugarte. A música, um samba composto nos anos 40 para exaltar o povo brasileiro na voz de Carmen Miranda e posteriormente gravada pelos baianos, ganha novas cores e ritmos nas vozes de Juliana Strassacapa e os irmãos Ugarte, e na guitarra excelente de Andrei Martinez Kozyreff. O quarteto brincou com os timbres e os tempos de letra e melodia, levou sua sonoridade característica e transformou Brasil Pandeiro em uma canção ainda mais viva, capaz de animar uma pista de dança sem nenhuma dificuldade, imprimindo a qualidade já vista em seus trabalhos anteriores

Há um fundo nas cores violeta e laranja. A frente, 4 pessoas vestindo branco. Na esquerda, Mateo Ugartes segurando um violão marrom. É branco, tem os cabelos curtos e castanhos. Está parado em frente a um microfone com pedestal. Ao seu lado direito está Andrei Martinez. É branco, tem cabelos compridos e loiros. Ele segura uma guitarra branca. Há ao seu lado uma bateria preta e prateada. Sebástian Ugartes está atrás da bateria, segurando duas baquetas. É branco, tem o cabelo curto e rosa. A sua frente está Juliana Strassacapa. É branca, tem o cabelo curto e castanho. Está segurando um pandeiro e cantando em frente a um microfone com pedestal. No topo da imagem há uma letreiro luminoso escrito: Replay Acabou Chorare - Francisco El Hombre.
Francisco El Hombre na gravação de Brasil Pandeiro (Foto: Reprodução)

E quem poderia imaginar Preta Pretinha em reggae? Pois José Francisco Tapajós imaginou e tomou uma decisão acertadíssima ao trazer a banda mineira Onze:20 pra regravar aquela que é talvez a canção mais conhecida do Acabou Chorare. Na voz um tanto rouca de Vitin, o vocalista do grupo, a guitarra afinada de Chris Baumgratz e sem perder o ritmo característico do gênero, a canção mantém sua essência. É possível distinguir ali todos os traços de Onze:20 e dos Novos Baianos, uma mistura nada impossível, que brinca novamente com sonoridades que muito bem poderiam terem sido escolhidas pelos baianos no Cantinho do Vovô e abre a possibilidade para imaginar outros clássicos traduzidos para o ritmo. Como seria Panis Et Circenses em reggae? Talvez um dia tenhamos uma resposta. 

A terceira faixa do álbum é Tinindo Trincando, a psicodelia aflorada dos baianos e ninguém melhor que Céu para repaginar a canção. A cantora, que ano passado foi considerada a mais influente de sua geração, bebe de diversas fontes para o update, trazendo sintetizadores e batidas da música afro eletrônica, com inspirações nos anos oitenta e destaca a voz da cantora, tão marcante quanto a de Baby do Brasil, uma das referências para Céu. Novamente, é possível encontrar os pontos da personalidade do artista convidado e as claras referências à versão original, cumprindo assim um dos maiores desafios das regravações: o respeito com o clássico e a criação do novo. 

 Há um fundo amarelo. No primeiro plano, está Céu, uma mulher branca, de cabelos curtos e escuros. Está vestindo uma blusa azul, com uma listra verde e uma amarela. Tem um headphone nos ouvidos e a sua frente está um microfone de gravação profissional. Ela está com os olhos fechados e mordendo os lábios.
Céu na gravação de Tinindo Trincando (Foto: Reprodução)

“Essa magia que envolve os Novos Baianos representa um Brasil”.  

Em Swing de Campo Grande, ninguém melhor que os novos e populares Gilsons para reler e reinterpretar a canção alegre e dançante. O trio formado por José, João e  Francisco Gil, respectivamente filho e netos de Gilberto Gil, traz sua identidade para a música, levando o Campo Grande diretamente para a beira do mar num fim de tarde de música e sol. Com suas vozes suaves e instrumentos de sopro e percussão, saímos do Cantinho do Vovô em Jacarepaguá e pegamos a estrada em direção à Salvador, imaginando o que teria sido da canção caso tivesse surgido em clima praiano. Em mais uma das muitas escolhas acertadas Replay, Gilsons reafirma qualidade, tanto no vocal quanto instrumental, e imprime sua personalidade em uma das melhores versões do disco.

Acabou chorare, foi o que Bebel Gilberto disse para seus pais, João Gilberto e Miúcha, ao cair e começar a chorar. Misturando o português e o espanhol, resultado de ter sido educada nas duas línguas, a criança surpreendeu os dois adultos e serviu de inspiração para Luiz Galvão e Moraes Moreira nomearem o álbum e escreverem a música, tão suavemente cantada em sua versão original e lindamente regravada por Maria Gadú, que manteve a delicadeza da canção ao mesmo tempo em que ousou em batidas mais fortes. Seu fiel violão aparece na companhia de um baixo e guitarra, sendo acompanhamentos perfeitos para a voz um tanto chorosa de Gadú, emocionada pela morte recente de Moraes Moreira. A forma como a faixa foi reinterpretada é o encerramento perfeito para o lado A do disco, que mesmo em sua versão digital não deve ser ouvido como uma coisa só, e abre caminho para o lado B, tão surpreendente quanto seu antecessor. 

Encarando de frente o desafio de abrir o lado B do disco, a sanfona de Marcelo Jeneci e a maior transição de sonoridades do Replay marca a canção Mistério do Planeta, muito bem conduzida em sua versão adaptada ao mundo pandêmico e cada vez mais misterioso. Com elementos referentes ao funk, sobreposições de vozes e efeitos alusivos à viagem planetária da canção, Jeneci traduz os diversos sentimentos da letra para a melodia e desperta uma curiosidade em imaginar Paulinho Boca de Cantor interpretando a versão ousada de sua canção mais marcante do disco. 

Por falar em ousadia, que parece ser a palavra mais usada para definir o Replay, somos guiados para a sétima faixa do álbum e que surpresa é ouvir sons eletrônicos e a voz suave de Xênia França conduzindo uma versão mais lenta de A Menina Dança, clássico que nos acostumamos a ouvir na vozes de Baby e Marisa Monte. A surpresa logo abre espaço para a felicidade e nos três minutos e dezoito segundos de duração, Xênia nos envolve em seu ritmo e encanta com seu sotaque que parece saborear a letra, reafirmando que existe mais de um jeito certo para interpretar a canção. 

Há um fundo lilás, com brilhos prateados. Na direita, uma homem negro, tocando teclado. Usa uma blusa branca com vermelho. No meio está Xênia França, uma mulher negra, de cabelos compridos. Ela está usando um macacão salmão, com botões pretos. Está cantando em frente a um microfone com pedestal e sua mão direita está sobre o microfone. No seu lado esquerdo está um notebook branco aberto sobre uma mesa pequena. Ao fundo está outro homem negro, vestindo uma blusa azul. Ele está tocando uma bateria vermelha.
Xênia França interpretando A Menina Dança (Foto: Reprodução)

O samba chega no Replay Acabou Chorare através de João Cavalcanti, o ex-vocalista do grupo Casuarina, que trouxe a alegria de Besta é Tu, mantendo sua identidade musical nos instrumentos e preservando elementos fundamentais da versão original, como a divisão dos versos e o tempo bem pontuado. Não satisfeito com uma belíssima homenagem ao regravar a canção com tanto respeito, João acrescentou no final uma citação sua, um agradecimento aos baianos que tanto influenciaram a música brasileira. Um agradecimento escrito por ele, mas que poderia ter sido escrito por qualquer um de nós. 

“Pois besta é tu que pensa que eu não posso ser baiano só porque eu nasci no Rio. Pois eu sou um novíssimo baiano há muito tempo e só sou o que sou por causa de Moraes, Baby, Pepeu, Paulinho, Dadi e Galvão.”

O solo de cavaquinho tocado por Jorginho em Um Bilhete para Didi ganha não apenas uma nova interpretação no Replay, mas nova roupa e personalidade, com a percussão baiana do grupo Afrocidade repaginando completamente a canção. Um instrumental poderia facilmente se tornar irreconhecível ao ser tocado de outra forma, mas não foi o que aconteceu na nova versão, pois para o bom ouvinte do Acabou Chorare, é possível reconhecer cada nova fase da música, que passa por diversas transições em seu caminho e marca o começo do fim do disco. 

A faixa final ficou a cargo de Letrux e Iolly Amâncio, duas vozes que se encontram na reprise de Preta Pretinha e se completam em suas diferenças e similaridades. Na canção, é possível distinguir elementos trazidos por cada uma, como os sintetizadores de Letrux e a batida forte de Iolly, assim como conseguimos distinguir o que vem diretamente dos baianos. Há um quê de saudade na forma como “abre a porta e a janela” é cantada na canção e a mudança repentina para o funk surpreende para deixar um sorriso no rosto, de coração feliz por mais versão excelente, que encerra o disco com o gostinho de quero mais, já conhecido da versão original de Acabou Chorare

Há um fundo vermelho, com detalhes em branco e lilás. Na esquerda da imagem, Iolly Amâncio, uma mulher negra. Ela tem dreads no cabelo, veste uma blusa preta e um short dourado. Suas mãos estão na cintura e ela está cantando em frente a uma microfone com pedestal. A sua esquerda está Letrux, uma mulher branca, de cabelos curtos e loiros. Está vestindo uma jaqueta vermelha e uma calça azul. Tem uma mão estendida e está cantando em frente a um microfone com pedestal.
Iolly Amâncio e Letrux no clipe de Preta Pretinha (Foto: Reprodução)

Como disse Elis Regina em Imagem, “mais que nunca, é preciso cantar o que é nosso”. Em tempos de crise como os que vivemos, é fundamental mantermos vivos os grandes ícones que forjaram o que nós entendemos atualmente como a música brasileira. Não somente a dita MPB, mas a música feita no país, que traduz a nossa cultura, nossos valores e a nossa história.

Acabou Chorare é um desses grandes representantes do que é nosso e ao reinterpretar o disco de forma tão genial, atual e acima de tudo respeitosa à versão original, o projeto Replay afirma sua importância nesse cenário, abrindo espaço para novas reinterpretações que poderão ajudar nessa luta para manter vivo o que temos de mais precioso no nosso Brasil: a nossa cultura. 

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