Beba o sangue e obtenha vida eterna em Missa da Meia-Noite

Fotografia da série Missa da Meia-Noite. A imagem é retangular e mostra o interior da igreja da série. Em primeiro plano, está o padre Paul, de costas para a câmera, discursando para o público, em segundo plano. Seus braços estão abertos e ele usa uma batina vermelha. Seus cabelos são escuros e ondulados. A igreja é pequena. Duas fileiras de longos bancos de madeira estão postadas, uma de cada lado de uma passagem, que leva até a porta. Todos os espaços nos bancos estão preenchidos e todos observam atentamente o padre. Alguns rostos estão sérios, outros, como o de Bev Keane, sorriem. Bev é interpretada por Samantha Sloyan. Samantha é uma mulher branca, na casa dos 40 anos. Ela tem cabelos ruivo-escuros, que estão presos em um coque atrás da cabeça. Seu rosto é redondo e seu nariz é fino.
“Missa da Meia-Noite é um mistério sobrenatural. É um drama pessoal. É uma experiência notória de horror” disse o criador Mike Flanagan, em entrevista para a Netflix (Foto: Netflix)

Mariana Nicastro

“Lembra-te que és pó e ao pó voltarás”Gênesis 3:19. Muitas coisas são capazes de nos cegar. Amor. Raiva. Medo. Fé. Há tempos a busca por verdades absolutas, que acalentam as vidas humanas, desencadeiam na criação de mitos e religiões. Mas e quando eles ultrapassam seus objetivos fundamentais e obstruem nossas noções de bem e mal? E quando afetam nossos valores, princípios… Nossa humanidade? Esses são alguns dos questionamentos abordados em Missa da Meia-Noite, série de horror original da Netflix, lançada em 24 de setembro de 2021.

Escrita e dirigida por Mike Flanagan, a minissérie de 7 episódios se consagra como o mais novo xodó dele – e de seus fãs. Conhecido por adaptar, de forma habilidosa e criativa, histórias já existentes do horror clássico como em A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly, dessa vez, Flanagan apresenta uma narrativa completamente original. Ele se inspira principalmente em dúvidas e medos que tinha quando jovem. Muitos envolvendo a fé. Essa ideia, junto de seu olhar inventivo para o Terror psicológico, resulta na ousada Midnight Mass

Fotografia da série Missa da Meia-Noite. A imagem é retangular e mostra os personagens Erin e Riley caminhando lado a lado pela rua. Eles aparecem do joelho para cima. Erin está à esquerda na imagem e Riley, à direita. Erin é interpretada por Kate Siegel. Kate é uma mulher branca, na casa dos 40 anos. Seus cabelos são castanhos, ondulados e vão até abaixo dos ombros. Ela tem um rosto quadrado e olhos azuis. Ela usa um vestido florido e um casaco cinza de botões, por cima. Está de braços cruzados e olha para frente. Riley é interpretado por Zach Gilford. Zach é um homem branco, magro e alto. Ele tem um rosto fino, cabeça raspada e barba rala. Usa uma calça jeans e uma jaqueta preta por cima de uma camisa azul xadrez. Ele está com as mãos nos bolsos e seu olhar está voltado para Erin. No fundo, estão algumas casas simples de madeira dos dois lados da rua, e é possível ver alguns moradores mais distantes, desfocados, caminhando. O dia está nublado e a imagem tem um tom acinzentado.
“O bom filho à casa torna”; Riley é o filho pródigo da família Flynn, uma das muitas referências bíblicas abordadas na série (Foto: Netflix)

O cenário de nossa história, quase em sua totalidade, é a Ilha Crockett. Isolada do resto do mundo, ela está coberta por uma nuvem de frustrações, traumas e medos. Em situações maquiadas, principalmente, com tradições religiosas, responsáveis por influenciarem fortemente os costumes e valores da ilha. Cinzenta, misteriosa e solitária, formada por seus 127 habitantes, ela é o cenário perfeito para uma história de horror. Daquelas na qual o mal ronda o ambiente e se alimenta de seus moradores, se materializando das mais diversas formas. 

Dentre esses habitantes, estão os personagens que compõem os diferentes núcleos pelos quais o roteiro transita. Riley Flynn (Zach Gilford), e sua família protagonizam a história em um primeiro momento. A trama tem início com seu retorno à ilha onde cresceu, após cumprir sua pena na prisão por causar um acidente com drásticas – e traumáticas – consequências. Simultaneamente, outra figura misteriosa é convidada a visitar a área e ela leva consigo dádivas e condenações.

Fotografia da série Missa da Meia-Noite. A imagem é retangular e mostra o personagem Hassan sentado na mesa de seu escritório, na delegacia de polícia. Hassan é interpretado por Rahul Kohli. Rahul é inglês e tem descendência indiana. Ele tem cabelos curtos, lisos e escuros e usa barba. Usa uma camisa de botões azul, de policial. Ele está com os cotovelos apoiados na mesa a sua frente e gesticula com os braços, olhando para frente. A mesa está repleta de papéis, pastas e envelopes. Atrás dele, na parede do escritório, há alguns papéis pendurados e dois móveis de madeiras nos quais estão apoiados mais papelada.
O xerife Hassan, além de se encarregar de investigar os eventos curiosos em Crockett, ainda precisa lidar com a forte intolerância religiosa da região e suas implicações para sua família (Foto: Netflix)

Além de Riley, a história nos apresenta a Erin Greene (Kate Siegel), ao padre Paul (Hamish Linklater), Bev Keane (Samantha Sloyan) e outros personagens interpretados por um elenco sempre presente nas criações do diretor. Tratam-se de figuras complexas e interessantes, responsáveis por conduzirem os demais arcos da série. 

Esses arcos são construídos com os crescentes mistérios que rondam o local e seus moradores. Como o ataque brutal, e repentino, a animais e uma sucessão de milagres, que despertam a pequena população de sua habitual monotonia e desencadeiam uma investigação, liderada pelo Xerife Hassan Shabazz (Rahul Kohli). 

Erin é responsável por abordar diversos questionamentos filosóficos e conduzir grande parte da carga dramática da obra, com uma impecável atuação da musa – e esposa – de Flanagan. Paul Hill, o misterioso e carismático padre recém-chegado, apresenta-se como um dos maiores enigmas da história e é capaz de envolver e abismar o telespectador com sua intensa convicção e dualidade. Quanto ao papel de Samantha, cabe dizer que ela o entrega com tanta perfeição, que odiamos Bev Keane com todas as forças, enquanto admiramos Sloyan por esse feitio. 

Fotografia da série Missa da Meia-Noite. A imagem é retangular e mostra o busto da personagem Bev, focalizado no centro da foto. Bev é interpretada por Samantha Sloyan. Samantha é uma mulher branca, na casa dos 40 anos. Ela tem cabelos ruivo-escuros, que estão presos em um coque atrás da cabeça. Seu rosto é redondo e seu nariz é fino. Ela olha para a esquerda com uma expressão de surpresa. Ela usa uma túnica branca e tem uma grande mancha escura de sangue no peito. A imagem é bastante escura, com pouca saturação das cores. O fundo atrás de Bev está desfocado, mas é possível ver uma porta entreaberta às suas costas.
Bev representa o que há de pior no ser humano, quando paixão cede espaço ao fanatismo: intolerância, egoísmo, opressão e violência (Foto: Netflix)

Longos e marcantes diálogos – ou monólogos – perduram por toda a série, assim como os espetáculos de atuação. As razões da existência humana, vida após a morte, fé, fanatismo, preconceitos e dogmas religiosos são assuntos delicadamente abordados por Flanagan. Ele trabalha diferentes perspectivas, de forma emocionante e reverente. Como durante uma intensa conversa entre Erin e Riley, na qual surgem duas diferentes respostas à pergunta “para onde vamos quando morremos?” e ambas são capazes de emocionar e sensibilizar tanto a seus falantes, quanto a nós, meros observadores, que ali nos vemos representados.

Reflexões desse tipo, e o foco nos dramas pessoais vividos em Crockett, podem até passar uma sensação de vagarosidade para quem busca características comuns de um Terror sobrenatural, mais instantâneo e óbvio. A série, de fato, leva um tempo para mergulhar nesses aspectos. Mas mesmo que diminua seu ritmo em alguns momentos, com a finalidade de transmitir suas mensagens, ela sabe dosar o tempo que gasta com essa ação. E logo, retoma o andamento do suspense e mistério, jamais os abandonando.

Gif da série Missa da Meia-Noite. O gif retrata o busto do padre Paul Hill, parado na entrada na igreja, voltado para seu interior. Ele está bem no centro da imagem. Paul é interpretado por Hamish Linklater. Hamish é um homem branco, na casa dos 40 anos. Ele tem cabelos castanhos e ondulados, um rosto oval e sobrancelhas grossas. Ele usa uma camisa social preta com uma pala branca. Há uma mancha de sangue acima de sua sobrancelha esquerda e sua expressão é preocupada. Na imagem, há uma legenda para o que ele está dizendo. Ela exibe “God, am I proud of you” (Deus, como estou orgulhoso de você). As paredes da igreja visíveis estão manchadas de sangue, iluminadas por luz de velas. Atrás de Paul é possível ver o exterior. É noite e há muita neblina.
O Padre Paul impressiona e assombra com sua personalidade e motivações intrigantes, sendo um dos maiores destaques e acertos da série (GIF: Netflix)

Dúvidas, medos e problemáticas são trabalhados com uma sensibilidade e cuidado previamente evidenciados em outras produções do diretor. Ainda assim, Missa da Meia-Noite difere das demais com sua originalidade, mesmo que Mike seja sempre influenciado pelas narrativas do Rei do Terror, Stephen King. É no autor e em sua obra Salem’s Lot que a série se inspira, principalmente com a escolha de sua temática sobrenatural – ou seria celestial

O roteiro progride satisfatoriamente em suspense, revelações, bizarrices e também no sobrenatural, conforme avançam os episódios. A narrativa é inteligente, curiosa e alimenta o espectador com pistas da criatura responsável pelos eventos que assombram a ilha. Ainda que atue inicialmente com a sugestividade, quando a trama finalmente revela seu outro lado, contrapondo-se a dramas dos personagens e críticas sociais, o resultado é de matar

Fotografia da série Missa da Meia-Noite. A imagem é retangular e mostra 5 personagens no meio da rua, no escuro. Os 5 olham para cima, surpresos. Está de noite e há pouca iluminação nos postes de luz. A câmera observa os personagens em um plano aberto, de forma que é possível vê-los dos joelhos para cima. Os personagens na imagem são, da esquerda para a direita: Sarah, Warren Flynn, Leeza, Erin e por fim, Hassen. Sarah é uma mulher branca, na casa dos 50 anos. Ela tem cabelos castanhos e curtos e usa uma jaqueta jeans. Warren é um garoto jovem, branco, de cabelos loiros e cacheados. Leeza é uma menina jovem, negra, de cabelos escuros longos, presos em um rabo de cavalo. Erin é uma mulher branca, na casa dos 40 anos. Seus cabelos são escuros e ondulados. Ela usa um vestido e, por cima dele, um casaco cinza de botões. Por fim, Hassan é um homem alto, na casa dos 40 anos e tem ascendência indiana. Ele tem cabelos curtos, lisos e escuros e usa barba.
Annabeth Gish, Henry Thomas e Alex Essoe (assim como Carla Gugino, com uma breve participação) completam o elenco já conhecido de outras obras do cineasta [Foto: Netflix]
Com tais revelações, a série adquire outro nível de tensão. Agora, além de lidar com seus traumas e problemas, os moradores da ilha são obrigados a enfrentar o Mal em carne e osso (e sangue). Produzida em um ano bastante próximo da comemoração dos dois séculos da primeira história de vampiros, ela reinventa o gênero com maestria, ainda que não seja, em sua essência, sobre vampiros.

Vampiro, na verdade, é uma palavra que sequer é mencionada durante a série, mesmo que os hábitos e características da criatura – e de suas vítimas – explicitem sua identidade. O anjo é cruel, está faminto, e tem esperteza o suficiente para infiltrar-se em uma população previamente corrompida, vulnerável a tornar-se sua presa. Ele, de fato, é uma manifestação do mal, mas os maiores monstros de Midnight Mass são, sem sombra de dúvidas, humanos.

Fotografia da série Missa da Meia-Noite. A imagem é retangular e mostra, em close, o Monsenhor Pruitt no escuro, frente a frente com um vampiro. Ambos estão de perfil. Monsenhor Pruitt está à direita da imagem e o vampiro à esquerda. O primeiro é um senhor idoso, branco com barba espessa e cabelos brancos. Ele segura um isqueiro bem no centro da imagem, que é a única fonte de luz no meio da escuridão. O vampiro é uma criatura com físico humano, uma pele repuxada e aparência velha. Ele é careca, tem um nariz enrugado e está gritando para o homem a sua frente. É possível ver um pedaço de suas asas de morcego atrás de si.
O anjo compartilha traços com o demônio vampírico Alukah, mencionado na Bíblia em Provérbios, mesmo nome do episódio em que ele se revela pela primeira vez (Foto: Netflix)

Missa da Meia-Noite é, em sua essência, a história da morte de uma comunidade. E é tudo contado sobre um pano de fundo do que parece, na superfície, como uma história tradicional de vampiros. Mas, no fim, é sobre o que ocorre quando boas pessoas, afastadas do restante do mundo, precisam lidar com suas crenças sendo corrompidas. São as decisões humanas que definem o destino de Crockett”.

(Mike Flanagan para a Netflix)

“Como uma criança que estava mergulhando na literatura clássica de Terror, os paralelos entre beber o sangue de Cristo – na comunhão – e o que eu estava lendo em Drácula, de Bram Stoker, foram inevitáveis”, diz Mike Flanagan, para a Netflix. Chamada por padre Paul de anjo (e nunca realmente vimos um anjo para contrariá-lo), a estética da criatura é monstruosa e demoníaca, mesmo que ela apresente alguns traços físicos humanos. Criado a partir de uma mistura de próteses corporais, maquiagem e efeitos especiais, o resultado é assustador e convincente.

Gif da série Missa da Meia-Noite. A imagem é retangular e mostra em um primeiro plano um público de uma igreja de costas. Só é possível observar suas cabeças. Atrás, em segundo plano estão o padre Paul no chão e, acima dele, no altar da igreja, um vampiro com suas asas e braços abertos. Paul é interpretado por Hamish Linklater. Hamish é um homem branco, na casa dos 40 anos. Ele tem cabelos castanhos e ondulados, um rosto oval e sobrancelhas grossas. Usa uma batina dourada. Ao longo do gif, padre Paul está conversando com o público e caminhando. O vampiro é uma criatura alta, com físico humano. Ele tem a pele repuxada, é careca e tem duas enormes asas de morcego, num tom bege acinzentado. Ele usa uma batina branca. Ao fundo, a igreja está iluminada por candelabros com velas.
Além das referências para a criação do anjo, e referências bíblicas, muitas outras foram meticulosamente aplicadas nos episódios (GIF: Netflix)

Mergulhando em recursos técnicos que, assim como os efeitos visuais, também fornecem um caráter belo e detalhista ao projeto, é impossível não destacar a excelente fotografia de Michael Fimognari. Ele se utiliza de câmeras que insistem demoradamente em quadros fechados, próximos aos rostos dos personagens em situações expressivas. Ou uma perspectiva inquieta de cima, em planos mais abertos e subjetivos, indicando o movimento e a observação do anjo

A rotineira parceria entre Flanagan e Michael é sempre enriquecedora, com técnicas de filmagem instigantes que auxiliam na construção do suspense. Técnicas essas, como a utilização de longos planos-sequência, que contribuem para a imersão e realismo. Os tons apagados e frios na fotografia perduram na maior parte do tempo, quando são apresentados cenários da ilha. As exceções se dão, principalmente, quando o Terror físico ganha espaço e existe fogo nas cenas. 

Fotografia da série Missa da Meia-Noite. A imagem é retangular e tirada de dentro de uma igreja, focando nas suas portas de entrada abertas, que revelam o exterior. Está de noite, o céu é azulado e é possível enxergar vários troncos de árvores. As portas são altas e estão bem no meio da imagem. À esquerda e à direita da perspectiva da câmera estão duas fileiras de bancos de madeira da igreja. Alguns castiçais e lustres com velas iluminam o ambiente. Existem muitas manchas de sangue nas paredes.
A trilha sonora certeira, que contribui para a construção de uma atmosfera assustadora, é de autoria dos The Newton Brothers, responsáveis pela trilha de Doutor Sono e das demais séries de Flanagan (Foto: Netflix)

Concretizando uma ideia que já estava em sua cabeça há anos, Flanagan teve o tempo necessário para entregar um trabalho meticuloso, caprichado e recheado de referências. Simbologias e detalhes que tornam sua invenção ainda mais especial. Como nas características vampíricas do anjo, ao não adentrar moradias, a menos que seja convidado por um membro da comunidade a fazê-lo, por exemplo. Ou com a atenção aos nomes bíblicos dos episódios e suas relações com seus conteúdos

Habilidoso em quebrar expectativas do público adicionando drama ao espanto e temor, do quinto episódio em diante, o pânico instaurado na história contribui para arquitetar seu perspicaz desfecho. A progressão do horror e da problemática criam uma expectativa engenhosamente atingida. Os distintos arcos da trama se unem e os mistérios que pedem por soluções recebem suas devidas respostas, até que toda a tensão carregada ao longo da série se manifeste em chamas. 

Sangue, violência, desespero e puro caos irrompem na conclusão dessa história que é assertiva ao combinar o sobrenatural clássico com a tragédia a qual a Ilha Crockett e seus habitantes estão fadados. Fadados não apenas pelo dramático encontro com a morte encarnada em pele de anjo do mal, mas sim diante de falhas humanas e monstros reais. Flanagan triunfa em transmitir suas mensagens carregadas de críticas, e ainda assim, repletas de delicadeza. E faz de Missa da Meia-Noite uma de suas obras-primas, um culto a uma narrativa sensível, contada sob a perspectiva do horror clássico.

Deixe uma resposta