Ana Júlia Trevisan
Você com certeza já viu essa máscara em algum lugar. Pode não saber sobre o que se trata ou não conhecer o roteiro do filme, mas é certo que conhece a Ghostface. Esse é o efeito Pânico: ser um divisor de águas e marcar de maneira inabalável o Terror apenas por sua identidade visual. Você está sozinha em casa à noite, fazendo pipoca e esperando seu namorado chegar. De repente, o telefone começa a tocar e você se vê dentro de um jogo macabro onde o fim é a morte. Essa é a fenomenal introdução de Scream, a franquia de Wes Craven que colocou o slasher de volta no radar e desmistificou que o subgênero do Horror estava em decadência.
Convenhamos que os anos 90 não foram fáceis para os filmes de Terror. Com o incalculável sucesso das décadas de 70 e 80, personagens como o monstruoso Jason Voorhees de Sexta-Feira 13, o assassino de criancinhas Freddy Krueger do icônico A Hora do Pesadelo e Michael Myers do imortal Halloween marcaram toda uma era do Horror. Mas, presos na fórmula mágica de suas próprias criações, as franquias não souberam o momento de dar um basta e continuaram produzindo, incansavelmente, sequências que não passam de mais do mesmo. Com Pânico (1996), Wes Craven vem para criticar essa produção em larga escala e nada conteudista, e rejuvenescer o slasher.
Quem dá início ao show é a brilhante Drew Barrymore. Ansiando alavancar sua carreira e não ser apenas o rostinho de Charlie McGee em Firestarter, a atriz apostou em cheio na introdução de Pânico. A ideia de ser relevante mesmo com poucos minutos de cena foi um acerto em cheio de Barrymore, e sua agonia na primeira presença do Ghostface estampou a cara da produção de 1996. Aliás, a cena inicial de Scream, pensando todo o conjunto da franquia, é sempre um espetáculo à parte. Seja no cinema ou sendo um filme dentro do filme, os primeiros minutos da produção são cruciais para catapultar a atenção do espectador nas quase duas horas de terror e suspense que o aguardam.
A história da protagonista Sidney, firmemente interpretada por Neve Campbell, começa fora do foco do serial killer. A personagem é uma jovem que vive com seu pai em Woodsboro, na Califórnia. Sua mãe, Maureen Prescott, foi violentada e assassinada um ano antes dos acontecimentos do primeiro filme, por um amante que Sidney ajudou a reconhecer, prender e agora está no corredor da morte. Casey (Drew Barrymore), que foi morta no início de Pânico, era colega de classe da protagonista, e a corrida por informações que liguem alguém à sua trágica morte gera um engarrafamento de jornalistas e policiais na porta do colégio.
Assim, somos introduzidos a mais dois rostos conhecidos por imortais dentro da franquia: primeiro, Gale Weathers (Courteney Cox). A jornalista regional acredita na inocência de Cotton Weary (Liev Schreiber) – suposto assassino de Maureen – e topa qualquer sujeira para estar com sua câmera ligada focada em seu rosto; enquanto Dewey Riley (David Arquette) é um policial novato e nem um pouco respeitado, mas que é sempre o primeiro a aparecer quando o assunto é proteção à Sidney Prescott.
Não demora muito para que a protagonista receba a ligação do mascarado perguntando “Qual seu filme de terror favorito?”. A ideia do assassino é fazer um jogo com suas vítimas, um quiz sobre filmes de terror onde qualquer erro pode levar à morte. Mas a cada pergunta respondida corretamente, uma nova é feita, e logo Pânico mostra que não está de brincadeira e a meta é não deixar ninguém vivo. Os cômodos da casa inabitados, combinados aos movimentos da câmera, dão a certeza de que não somos o único par de olhos a observar as personagens.
Pânico é o melhor exemplo de que filmes de terror não precisam dar susto em seu público para serem produções excepcionais. Construído a tensão vagarosamente, cena após cena, predominado por adolescentes que estão com energia de sobra para estarem nos locais errados fazendo besteiras, Scream é sagaz e inteligente, criando-se como um filme dentro de um filme para satirizar seu próprio subgênero. Personagens como Randy Meeks (Jamie Kennedy) fazem com que a narrativa tenha uma conversa íntima com os fãs do slasher, gerando uma linha direta com as expectativas e previsões do público e provando que entende das regras básicas dos longas de terror.
Não demorou muito para o medo se instaurar na pacata cidade de Woodsboro, que decretou toque de recolher. Mas que tipo de adolescente não acha esse o momento ideal para uma festinha? Nessa altura do campeonato, a fantasia de Ghostface já havia se popularizado e todos tinham fácil acesso a um capuz preto e uma máscara branca que lembrava O Grito. Essa festa gera uma das mortes mais memoráveis entre os quatro filmes: Tatum Riley (Rose McGowan), a melhor amiga da Sidney, debocha na cara do Ghostface por não acreditar que ele era real, sendo morta em açodamento na porta da garagem. Pânico já havia avisado que não estava para brincadeira.
A genialidade de Scream vai além de sua metalinguagem e referência direta a grandes clássicos – mesmo que na maioria das vezes seja satirizando suas continuações. Ela se dá pelo choque de previsão e a revelação de dois assassinos, e tudo é minimamente plantado para que os próximos filmes da franquia possam se esbanjar na fonte de seu primogênito sem se afogarem na mesmice das sequências.
Banhado a sangue, o Pânico de 96 é o berço de toda a franquia e sempre reverenciado nas sequências. Seus personagens entram em voga nos roteiros – sejam vivos ou mortos, afinal os fantasmas de Woodsboro nunca pararam de assombrar Sidney Prescott. A dupla Gale e Dewey (esse segundo graças ao carisma do policial) batem ponto em todos os filmes, amparando a produção para fazer essa viagem de reembarque às raízes. Autoconsciente, Scream renovou o slasher por ser completamente imprevisível para a época e por trazer não um assassino imbatível, mas um assassino atrapalhado que antes de matar leva muita porrada.
Apesar de ter chegado aos cinemas em 1997, o segundo filme se passa dois anos depois dos acontecimentos do primeiro. O combustível da continuação é um best-seller sensacionalista escrito por Gale sobre os acontecimentos da maldita festa. A jornalista vivida por Courteney Cox é a personificação da mídia “que se espremer sai sangue”: ao invés de repudiar os assassinatos, ela causou efeito contrário, fazendo com que a fantasia de Ghostface vire tendência entre os jovens que lotaram a sessão de estreia de Stab. E por falar nele, é aqui que somos introduzidos a sequência de filmes baseados no livro de Gale, que perduram durante toda a franquia e imortalizam tudo que aconteceu naquela fatídica noite em Woodsboro.
A popularização da fantasia, nutrida pelo distanciamento cinematográfico do massacre, dá a brecha para que o roteiro inove na construção do assassino, fazendo com que todo o filme seja um mistério a ser solucionado sobre a real identidade por trás da máscara de Ghostface. A famosa primeira cena é uma morte no cinema – na sala de Stab, é claro -, e, tentando consertar da forma mais furada possível a ausência de personagens negros no primeiro filme, a abertura traz novos rostos em cotidiana situação para Scream 2.
Dewey volta para proteger Sidney, que nessa altura já espera o telefonema do mascarado, e Gale retorna atrás de um furo de reportagem e quem sabe para até mesmo escrever um novo livro. Cotton – que foi inocentado em 1996 – aparece tentando uma entrevista televisionada ao lado de Sidney, isso visando o dinheiro que a conversa renderia. Quem também dá as caras no segundo filme é o amigo fissurado em Terror, Randy. Mas todo seu conhecimento sobre o assunto não traz tanta sorte, e ele é uma das primeiras vítimas de Pânico 2 – uma perda bruta que fez os roteiristas passarem dois futuros filmes tentando arrumar a besteira que fizeram.
Gale se torna uma persona ainda mais complexa em 1997, agindo como causa e consequência tanto para o início como para o fim da trama. Ela, que agora tem até uma tiete, é a primeira a notar que o assassino está repetindo as mortes de Woodsboro. Seu protegido Cotton leva fama de herói, algo que abriu os caminhos para o terceiro filme da franquia ser iniciado. E para não deixar de citar Derek Feldman (Jerry O’Connell), o personagem pode ser sintomático do dedo podre de Sidney ou um elemento de construção de narrativa, mas o namorado da protagonista já nasce com cara de suspeito.
Em Scream 2, Wes Craven e o roteirista Kevin Williamson acertaram mais uma vez ao serem autoconscientes e em saberem qual ferida do gênero eles queriam abrir, com a convicção de que são pertencentes ao meio, e com ainda mais local de fala para discutir as continuações desenfreadas. Assim, Pânico 2 sabe aproveitar da metalinguagem de seu antecessor para se guiar, fugindo de ser apenas uma sequência barata. Pelo contrário, foi graças a esse longa que a verba para o próximo rendeu.
A fama de herói de Cotton desemboca na sequência da franquia, que sabe como iniciar o terceiro filme – não de forma unânime como das duas primeiras vezes -, mas não se salva de ser considerado o pior da saga. Inferior, Scream 3 (2000) é fiel a sua narrativa que satiriza as franquias que se perdem. Mesmo com um enredo coeso, o roteiro força a barra do prelúdio para encerrar sua trilogia, e isso se deve a troca de roteiristas: no lugar de Kevin Williamson, quem assina o texto é o até então iniciante Ehren Kruger.
Dessa vez, o assassino deixa fotos de uma mulher nos locais onde cometeu seus crimes. Essa mulher é reconhecida por Gale Weathers – sempre ela – como Maureen Prescott, mãe da Sidney e que havia sido assassinada antes das mortes em série do primeiro filme. Não demora muito para a bomba cair no colo de Sidney, que vive, por motivos óbvios, isolada do mundo sob um pseudônimo, e trabalhando como telefonista em uma linha especial que recebe ligações de mulheres vítimas de abuso. Um vilão que liga para suas vítimas e uma heroína telefonista: é colocando o enredo na primeira marcha que o filme faz a protagonista tocar o carro em rumo ao perigo.
Scream 3 se passa no set de gravações de Stab 3, e a escolha de fazer seu terceiro filme simultâneo com o terceiro da saga de A Punhalada poderia ser o ponto alto da produção. Porém, ao ser mal aproveitado, tornou-se apenas um espetáculo de matança de personagens desimportantes, que não interferiam no seguimento dos originais da franquia. Com uma revelação menos chocante, Pânico 3 é o único a ter apenas um Ghostface, que ainda revela que sua fome por sangue advém de laços fraternos e que toda a combustão se dá pelo desejo de podar a árvore genealógica. Craven sabe muito bem que o terceiro filme é o fim de uma trilogia e que por tabela ele remete ao primeiro, deixando claro desde o início que isso está sendo feito de maneira consciente. Mesmo não sendo um primor, o longa de 2000 não deixa pontas soltas e sabe como interligar sua narrativa
Nesse momento, é preciso abrir um parêntese para dizer que apesar de Pânico 3 não chegar nem perto de tudo que era esperado do orçamento milionário do filme, existe pleno respeito por sua importância imprescindível dentro da franquia. Aqui, Wes Craven decide denunciar, antes do movimento #MeToo, toda a asquerosidade de Hollywood, principalmente a de Harvey Weinstein. Junto dos filmes de Quentin Tarantino, Scream era a joia preciosa na estante da Miramax. O nome de Weinstein se escondia nos créditos de produção, mas hoje, mais de 20 anos após sua estreia, sabemos muito bem tudo que Craven queria exteriorizar.
Em Pânico 3, é revelado que a origem de todos os assassinatos que aconteceram e os que viriam a acontecer, foi o estupro de uma atriz em uma festa comandada por poderosos produtores. Na vida real, o desprezível Harvey Weinstein, um dos produtores de Scream, é culpado por vários estupros, e a notícia vir à tona causou o efeito Weinstein, dando voz para que vítimas de abusos sexuais e suas denúncias. Pânico 3 foi o único projeto com o qual o executivo se envolveu significativamente, entrando em sua própria simbiose parasita com a realidade, apontando para um comportamento pelo qual ele mais tarde foi acusado e condenado.
Pânico se imortaliza por sua genialidade transcender as telas. Não apenas como um dos filmes mais inteligentes dos anos 90 por seu autoconhecimento como Terror dentro do subgênero slasher, mas também por saber trabalhar elementos cotidianos, tornando Woodsboro mais real e menos peça gráfica. Desde a mídia louca para transformar sangue em audiência até o estupro cometido por poderosos no ambiente hollywoodiano, Pânico encontra forças para se renovar, olhar para os problemas do hoje, digeri-los e transformá-los em texto.
Em 2011, Pânico 4 se redime do anterior e quita todos seus pecados – talvez o corte de cabelo de Courteney Cox tenha sido o maior deles. E nada mais justo do que uma versão moderna de Scream sair das mãos de seu próprio criador, com a dupla dinâmica Wes Craven e Kevin Williamson se reencontrando para conduzir o Ghostface de volta a Woodsboro. Se Scream 3 trouxe a cena de abertura menos surpreendente, Pânico 4 retorna o bom gosto da facada impactante da primeira cena e ainda encontra espaço para brincar com as continuações de Stab, que em 2011 já está em seu sétimo filme.
Logo no começo, o roteiro já avisa que o bom filho à casa torna. Mais de uma década pode ter se passado, mas a produção continua demonstrando que não está para brincadeira e o sarcasmo promete comer solto mais uma vez. Sidney volta para Woodsboro às vésperas do aniversário do primeiro massacre para o lançamento de seu livro Saindo da Escuridão. Antes mesmo dela pegar na caneta para dar os primeiros autógrafos, uma cena de crime se instala na cidade.
A partir daí, até o espectador se torna suspeito e Sidney não pode sair do local enquanto o delito não for solucionado. Gale e Dewey, na contramão da vida real, estão casadinhos e vivendo na cidade. Ele se tornou xerife e ela deixou a vida de repórter para se tornar uma escritora de ficção, mas que vive um bloqueio criativo. A nova onda de assassinatos, no entanto, destrava a mente da jornalista, que volta a relembrar os velhos tempos e ansiar pela caótica busca pela pessoa que está por trás da máscara branca.
Complementando o impacto dos rostos jovens e conhecidos que trazem um novo ar para Pânico, a sacada da franquia, quinze anos após sua estreia, foi brincar com os reboots. Randy ganha uma versão feminina: Kirby Reed (Hayden Panettiere) é amante do Horror e das sextas-feira 13, e tem veia de ser a única a driblar o jogo do Ghostface. A família de Sidney ganha holofote com sua prima e sua tia abrigando o anjo da morte. Aqui, a protagonista original se distancia da figura de final girl que teve na trilogia e cede espaço para que outra mulher assuma o posto. No fim? Cabe a Sidney Prescott, mais uma vez, fugir à regra da adolescência ingênua e virgem que sobrevive, ainda com tempo de dar um tiro na testa do assassino.
Se em 1996 ter um celular te colocava no topo da lista de suspeitos, em 2011 todos andam com seu aparelho no bolso, vivendo uma vida on-line gerada por views, compartilhamentos e curtidas. A franquia respeita sua temporalidade, olhando para a atualidade e condizendo com os monstros que assombram a juventude e os usando de ignição para um diálogo direto com o público, denunciando quem cruzar com seu roteiro. Ou seja, fazendo aquilo que Scream sabe fazer de melhor.
Pânico 4 serve um banquete para apresentar a história à nova geração, onde os fãs de longos anos tem espaço especial na mesa, degustando tudo de melhor que Scream tem a oferecer: nostalgia, sarcasmo, originalidade, sangue, busca pelo assassino, Sidney, Dewey e Gale, e uma revelação chocante, que embrasa por deixar os figurantes aquém da verdade. Coloco minha mão no fogo para dizer que essa talvez seja uma das melhores revelações nos quinze anos que guardamos filmes da saga.
Pânico é uma franquia que não se perde. A produção deixa claro que os três primeiros longas foram uma trilogia que já encerrou um ciclo. Marca insubstituível dentro da cultura pop, Scream tem uma veia crítica e inteligente que dialoga com o público enquanto tira sarro da própria classe. Scream 4, por sua vez, foi o começo próspero de uma nova era na produção, que foi celebrada e referenciada, e que depois de uma série de TV, agora volta para seu quinto filme com o elenco original, mas sem Wes Craven (que faleceu em 2015) e com Kevin na produção executiva.
A expectativa em relação a Pânico 5 é alta, e a volta de Neve Campbell, Courteney Cox e David Arquette serve como suspeita que o roteiro segue o alto padrão do passado. Se será tão bom quanto os anteriores saberemos apenas em janeiro de 2022, por enquanto fica o lembrete: nunca mexa com a porra do original!