Nilo Vieira
Artistas negros sempre estiveram entre os mais importantes e inovadores em todos os segmentos, ainda que o reconhecimento fosse tardio ou quase inexistente. Na década atual, porém, este cenário vem mudando, dado que as lutas sociais da população negra são cada vez mais constantes e visualizadas: mais do que nunca, exigem ser vistos, ouvidos e representados dignamente, especialmente na arte.
A bola da vez é o segundo longa-metragem do diretor Barry Jenkins, Moonlight – Sob a Luz do Luar. Indicado a oito estatuetas do Oscar, incluindo Melhor Filme, conta a história de Chiron, um jovem negro e homossexual. Talvez o paralelo mais direto possível com outra obra recente esteja em Blonde, último álbum de Frank Ocean e um dos 5 favoritos do Persona em 2016; no entanto, a comparação mais completa se dá com outro coming-of-age, agora musical: good kid, m.A.A.d city, a obra-prima de Kendrick Lamar.
Em entrevista ao site Pitchfork, Jenkins afirmou que conheceu “Every Nigger is a Star”, canção que inicia Moonlight, com o majestoso To Pimp a Butterfly de Kendrick – inclusive, ressalta que a inserção da música não estava no roteiro. Mas as semelhanças com o trabalho do rapper não param por aí: assim como as rimas detalhistas de good kid, m.A.A.d city, a opção de Barry por filmagens em planos médios ou fechados (além de eventuais movimentos rotatórios de câmera, uma metáfora para o fluxo inquieto da periferia) transporta o público para dentro das cenas. Os resultados são sempre intimistas, mas nem sempre confortáveis, como bem demonstram a perseguição inicial do filme, onde o espectador é colocado dentre os agressores, e este trecho da pesada “The Art of Peer Pressure”:
It’s 2:30 and the sun is beaming
Air conditioner broke and I hear my stomach screaming
Hungry for anything unhealthy and if nutrition can help me
I’ll tell you to suck my dick then I’ll continue eating
A violência urbana se faz bastante presente em ambas as produções. Ao passo em que Lamar lida com rixas de gangues e policiais, Jenkins denuncia o bullying escolar e a homofobia, enraizada até mesmo dentro da família do protagonista. A covardia é escancarada, com os valentões sempre atacando em grupos ou, pior ainda, apelando para que terceiros iniciem as agressões. Na parte em que Kevin, amigo de infância de Chiron, o espanca e este insiste em levantar, logo vêm à mente duas linhas do refrão de “Money Trees”: “Everybody gon’ respect the shooter/ But the one in front of the gun lives forever” – é a hipocrisia imposta por um código de nicho nocivo prevalecendo, lá e cá. Curioso notar também que as partes mais hostis acabam quase destoando do ritmo proposto pelos dois produtos, mas também acabam como grandes destaques e tanto a vingança de Chiron como a frenética “m.A.A.d city” são de arrepiar.
Chama a atenção o fato de que, conforme as duas narrativas progridem, personagens secundários relevantes nas tramas são deixados de lado. É como se Kendrick e Barry quisessem mostrar que, apesar da dor da perda, a vida continua e devemos seguir adiante. Desse modo, o fato de Juan (vivido pelo excelente Mahershala Ali) e Sherane, ex-crush de Lamar, serem relembrados literalmente com apenas uma frase não demonstra frieza. Sua influência perdura e eles estão vivos ali, na evolução dos protagonistas. A fala da mãe de Chiron, Paula, (Naomi Harris) é certeira: “Eu fodi tudo nessa vida, sei disso. Mas seu coração não precisa estar escuro como o meu, querido. (…) Você não precisa me amar, mas saiba que eu te amo.”
O desenvolvimento destes, aliás, é um interessante ponto de divergência entre Moonlight e good kid, m.A.A.d city. Enquanto Kendrick Lamar vai de um moleque assustado, cercado por gangues ao posto de novo rei do hip hop, Chiron conserva seus trejeitos de rapaz quieto e inseguro, mesmo após enfim ter a chance de começar do zero. A repressão de sua sexualidade, potencializada em mil vezes pelo ambiente hostil em que viveu por toda sua vida, se revela como a coluna dorsal de sua personalidade retraída e ainda que o final do longa não seja épico como “Compton”, também é uma bela ode à superação. Os alunos agora se veem na posição de seus mentores espirituais (o de Lamar literalmente participa da faixa em questão), com a difícil tarefa de levar seu legado adiante de maneira diferente – ainda que os dois se encontrem engolidos pelo sistema. Lamar revoluciona o rap, Chiron abre o peito e se aceita.
Sensibilidade é palavra-chave para se falar de Sob a Luz do Luar. Assim como em La vie d’Adèle (2013), outro filme comentado desta década com protagonistas gays, o azul é preponderante. Além de dar unidade ao filme, os constantes detalhes com a cor servem ao contexto poético do filme – diferente do longa francês, onde mais parecem cacoetes mal adaptados da HQ homônima. E há de se ressaltar os diálogos, cujo realismo só reforça o teor visceral proposto para o enredo. Em especial, os questionamentos do “Moleque” na mesa de almoço de Juan, onde a inocência infantil é enfim tomada pela realidade áspera (assim como na vida real do pequeno ator Alex R. Hibbert), e o encontro noturno de Chiron e Kevin na praia merecem menção.
E good kid, m.A.A.d city não fica atrás. Assim como em Moonlight, Lamar descreve o sexo como um platonismo instintivo juvenil (“Sherane a.k.a Master Splinter’s Daughter”), mas sem negar o lado poético e romântico do ato (“Poetic Justice”). A cultura do alcoolismo, que inclui o Chiron adulto entre as vítimas, é retratada de maneira vívida em “Swimming Pools (Drank)” – por ironia do destino, ainda é considerada por muitos como uma banger feita para beber. Frases aparentemente banais (“ya bish?”, “me and the hommies”) se transformam em mantras, e assim como os skits, dão liga à história. A produção diversificada concilia verdadeiras porradas (“Backseat Freestyle”) com peças quase etéreas – a base de “Money Trees” poderia ser encaixada como fundo para a cena de Juan e Chiron na praia -, e é das mais abrangentes do gênero.
Mas o universalismo do disco atinge seu ápice real em “Sing About Me, I’m Dying of Thirst”, uma epopeia de doze minutos dividida em duas partes. Talvez a melhor canção assinada por Kendrick, sumariza todos os temas apresentados no álbum em uma narrativa não menos que cinematográfica, recheada de rimas complexas e referências. Um trecho desconectado do todo não fará justiça à música, mas serve como aperitivo do poder de fogo do rapper:
And I’m not sure why I’m infatuated with death
My imagination is surely an aggravation of threats
That can come about, ’cause the tongue is mighty powerful
And I can name a list of your favorites that probably vouch
Maybe ‘cause I’m a dreamer and sleep is the cousin of death
Really stuck in the schema of wondering when I’mma rest
And you’re right, your brother was a brother to me
And your sister’s situation was the one that pulled me
In a direction to speak of something that’s realer than the TV screen
Se Kendrick é cinematográfico, também pode-se dizer que Barry Jenkins é um sujeito musical. A trilha de seu segundo filme é eclética e resgata a história negra, indo do r&b tradicional de Barbara Lewis ao trap típico de Atlanta. Além disso, as composições instrumentais do conceituado arranjador Nicholas Britell (12 Anos de Escravidão, A Grande Aposta) não fazem feio, com temas emocionais no nível exigido pelo longa.
Em um mundo ideal, Moonlight já estaria com ao menos 5 estatuetas garantidas na prateleira. Infelizmente, do mesmo modo que good kid, m.A.A.d city perdeu o Grammy de “Álbum do Ano” para um engodo retrô em 2014, a probabilidade de La La Land faturar o Oscar mais almejado é grande. Se Boyhood (2014), com um protagonista branco e doze anos de filmagens nas costas, já não convenceu a Academia com sua proposta de coming-of-age contemplativa, que dirá um longa-metragem de baixo orçamento e que bota o dedo na ferida das contradições humanas e sociais?
Talvez apenas as indicações já sejam o bastante. Assim como os dois petardos de Kendrick Lamar na música, a obra-prima de Barry Jenkins já figura entre os grandes da década, e só reitera a força crescente dos artistas negros. Resta torcer para que o diretor siga os passos do rapper e nos entregue outros trabalhos excelentes – o reconhecimento por parte dos entusiastas da arte já é uma garantia, e se a indústria cultural persistir em ser pedante e racista, só resta um sentimento:
grande crítica dark nilão, sempre bem conciso e agregador